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domingo, 9 de abril de 2023

CINEMA: "Great Yarmouth: Provisional Figures"



CINEMA: “Great Yarmouth: Provisional Figures”
Realização | Marco Martins
Argumento | Ricardo Adolfo e Marco Martins
Fotografia | João Ribeiro
Montagem | Mariana Gaivão, Karen Harley, Marco Martins
Interpretação | Beatriz Batarda, Nuno Lopes, Kris Hitchen, Romeu Runa, Rita Cabaço, Hugo Bentes, Robert Elliot, Michael Rawson, Joseph Ross, Eve Woods, Félix Magar Phibbs, Craig Smith, Kerry Gedge, Ana Frostic, Sidney Hart, Josh Farr, Andy Whittred, Ted Tank
Produção | Kamilla Hodol, Filipa Reis
Portugal, Reino Unido | 2022 | Drama | 113 Minutos | Maiores de 14
Cinema Trindade
08 Abr 2022 | sab | 19:30


Great Yarmouth é uma cidade costeira do Condado de Norfolk, outrora importante centro turístico - Charles Dickens descreve-a no seu “David Copperfield” como “o melhor lugar do universo” - graças à imensidão das suas praias, aos “santuários de vida animal de Breydon Water e Halvergate e aos muitos espaços de diversão construídos sobretudo a partir de 1844 com a chegada à cidade do caminho de ferro. Hoje é uma cidade decrépita, sem brilho, local de destino de trabalhadores-imigrantes ilegais (ou “provisional figures”, isto é, pessoas à espera de legalização) oriundos em grande parte do nosso País. São os “pork and cheese” (perceba-se a similitude fonética com “portuguese”), como são “carinhosamente” tratados pelos britânicos, exploradores de mão-de-obra barata nas fábricas de abate e reprocessamento de perus. É nesta cidade, outrora florescente e que hoje não passa de um “buraco” onde o cheiro do sangue e da merda estão espalhados por todo o lado, que vamos encontrar Tânia, conhecida como “a Mãe dos portugueses”, angariadora da força de trabalho, um elo mais de uma cadeia que leva ao fundo da humanidade.

O filme começou por ser uma peça de teatro com o mesmo título, com encenação e dramaturgia de Marco Martins e que tive oportunidade de ver no palco do Rivoli, à boleia do FITEI, em Junho de 2018. O trabalho com não-actores, a partir de um texto de Isabela Figueiredo e Gonçalo M. Tavares, conferia à peça um insuspeitado cunho de verdade do qual Marco Martins tirava partido como só ele sabe fazer. Mas a história não acaba aqui: Este verdadeiro “work-in-progress” viu-se obrigado a parar graças à pandemia, sendo retomado e dando lugar a um filme muito duro, de cores sombrias, rostos derrotados, paisagens decrépitas e esperança zero. Disparando em todas as direcções, o realizador dá-nos a ver um Reino Unido em queda livre, em busca da salvação por intermédio do Brexit, mas mais mergulhado na sua própria tragédia por causa do Brexit. Num ambiente preconceituoso e xenófobo, os resultados do capitalismo são evidenciados em todo o seu esplendor de forma hiper-realista, com tanto de desesperança como de sordidez, as pessoas tratadas como números que mais não são do que o combustível que alimenta a máquina trituradora do consumismo e da globalização.

No centro desta história há Tânia, casada (?) com um inglês proprietário de um dos hotéis degradados da cidade onde são alojados os imigrantes, aos dois e três em cada quarto. Tânia é Beatriz Batarda e Beatriz Batarda é, graças a uma interpretação avassaladora, a “alma” do filme. Câmera à mão, Marco Martins cola-se a ela de todos os ângulos, oferecendo-nos um retrato pungente da dualidade de sentimentos que atravessam esta mulher, que ambiciona poder vir a transformar o velho hotel numa aprazível estância para idosos, mas tem a consciência de que o seu sonho assenta na exploração dos compatriotas (e no dinheiro que desvia das contas do marido). Compreendemos desde o início que Tânia entrou num beco cuja única saída é virar às costas ao “sonho britânico” e regressar. A forma como o filme mostra uma verdade à qual a mulher não pode fugir é como uma garra que nos abre o ventre e nos agarra as tripas, obrigando-nos a “suportar” quase duas horas de dor e sofrimento para os quais não há paliativos. Desconheço se é essa a intenção do filme, mas “Great Yarmouth: Provisional Figures” reforça a minha falta de fé na Humanidade e torna-me (ainda mais) pessimista em relação ao mundo em que vivemos. E, já agora, impede-me de voltar a comer carne de peru.

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