CONCERTO: “A Força (O Poder) da Palavra – Um Canto a José Mário Branco”
Canto Nono
Dalila Teixeira, Joana Castro, Diana Gonçalves, Daniela Leite Castro, Lucas Lopes, Jorge Barata, Rui Rodrigues, Fernando Pinheiro
Arranjos | Amélia Muge, António José Martins, Canto Nono, Filipe Raposo, José Mário Branco, José Manuel David , Tomás Pimentel
Coliseu do Porto
28 Abr 2023 | sex | 21:00
Tum-tum. Tum-tum. Um bater de coração. Na grande tela do Coliseu do Porto o rosto de José Mário Branco. Naquele espaço e naquele tempo, enquanto aguardo a entrada em palco do Canto Nono, o pensamento recua. Tum-tum. Tum-tum. Talvez fosse um domingo. Ou um feriado. Sei que foi à tarde. As luzes fechadas sobre um Coliseu à pinha e a voz a irromper, pujante, no meio do plateia. “É companheiro…”. Como um clamor, um brado, um tocar a reunir. José Mário Branco, o próprio, atravessa o corredor até ao palco, “É Companheiro…”. E nós, os companheiros, ouvidos à escuta, a antecipar a força das palavras e o vibrar das emoções. “Se o pensamento for livre todos vamos libertar”. A lembrança surge agora muito vívida, apesar de haver um arco de trinta anos a separar os dois momentos. A emoção, essa, é a mesma.
Hoje, não viemos cá para homenagear o Zé Mário. (Sabemos o quanto ele era avesso a essas coisas). Viemos para celebrar o seu espírito de homem livre, “nascido no Porto, pequeno-burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro.” Para sentir (como se o não soubéssemos) o quanto “a cantiga é uma arma”. Para cantar bem alto músicas que nos estão gravadas nos genes, que são parte intrínseca de nós. Por isso sentimos nossas “as canseiras desta vida”, somos cavadores, pescadores, estivadores na “fúria de esmagar as cadeias para sempre”, notamos que há gente “cuja vida vai sendo consumida por miragens de poder” e tentamos ver a coisa ao contrário,“um preto Chamado Zé Mário” em cada um de nós. Entre o cá e o lá fazemos a “ronda do soldadinho”, tiramos o
tiro ao liro-liro, não nos deixamos prender a uma onda qualquer, mudamos os tempos, mudamos as vontades. Batemos o pé porque “não nos basta que o patrão nos dê trabalho, precisamos de mandar nas oficinas”. E no fim, de supetão, fazemos a “travessia do deserto” e cada um de nós vai à procura de si, na ruela da má fama cruza-se com o charlatão, perguntamos “qual é a tua oh meu” e ainda há tempo para gritar “eu vim de longe”. Quem sabia cantou, quem sabia “mais ou menos” trauteou e quem não sabia bateu palmas.
O concerto dos Canto Nono foi tudo isto e mais ainda. Foi a inteligência, a delicadeza, a emoção, a harmonia. Inteligência na construção do alinhamento, delicadeza na selecção dos temas, emoção no construção de ambientes, harmonia porque os Canto Nono são assim, o tempo a teimar em resistir à mudança, a vontade em contar uma história de lutas e valores cada vez mais firme. Diria que, tendo por termo de comparação o espectáculo a que assisti em 2003, que é invejável a condição vocal de cada um dos oito elementos do coro, vinte anos passados sobre um momento que guardo com emoção como um dos mais intensos a que me foi dado assistir. Em temas como “Recado ao Porto”, “Etelvina”, “Arcádia” ou “São João do Porto” percebe-se a mesma harmonia, uma qualidade dos arranjos única, uma rara cumplicidade entre as vozes. A isso junta-se o gesto e a mímica, contangiantes na forma como se transmitem. Percebe-se que, com grupos desta qualidade, o legado de José Mário Branco está nas melhores mãos. Quem escutou com atenção o “Canto dos Torna-Viagem” sabe bem do que estou a falar. O relato fica completo com a resposta à questão “O que Será” e com uma revelação: “Ela tinha uma amiga”. Por fim, uma palavra para “Habita-Acção”, que Mónica Guerreiro escreveu no espírito de José Mário Branco e que nos diz “que a gente envelhece, envelhece; e a vida atrasa. Tanta casa sem gente e tanta gente sem casa.” Confere!
Sem comentários:
Enviar um comentário