LIVRO: “Museu da Revolução”,
de João Paulo Borges Coelho
Ed. Editorial Caminho, Julho de 2021 (2ª edição, Julho de 2022)
“Mariamo, Mariamo. Alguém conhece Mariamo? Partem por aqueles caminhos antes amplos e perfeitamente esquadriados para neles circularem as máquinas da guerra e as ordens emanadas dos altifalantes que encimavam as torres de vigia, caminhos cujas margens o tempo foi esboroando até acabar por transformar nestes carreiros afeiçoados ao andar humano, aos pés rodados e aos rodados das bicicletas. Mariamo? Alguém conhece Mariamo?”
“Museu da Revolução” convoca uma série de reflexões em torno da escrita, essa arte de tecer histórias e de dá-las a ver. Foi esse o motivo - quiçá o único - que me fez não desistir do livro e aguentar estoicamente um virar de página sem fim à vista. Começo por falar de “economia narrativa”, conceito que o autor faz questão de ignorar, de tal forma se estende em descrições que confundem as noções de essencial e acessório e que nada acrescentam à história. Não exagero se disser que metade das páginas são supérfluas, o que faz com que o interesse se dilua e o tédio se instale com frequência. Mas há, depois, essa intensa corrente que percorre a linha do pensamento e se derrama em palavras que, alinhadas, mostram de que forma se ergue um livro. Um livro que é, em si mesmo, um “museu” feito de objectos raros ou banais, tornados únicos pelas histórias que encerram e que vão muito além de uma simples legenda na vitrina.
“Museu da Revolução” possui as particularidades de um livro de viagens. De Maputo a Vila de Sena, nas margens do Rio Zambeze, não muito longe da fronteira com o Malawi, cinco pessoas viajam numa carrinha Toyota Hiace, uma “chapa”, verdadeiro símbolo de movimento e de liberdade para os moçambicanos. Na necessidade de recuperar histórias que conhecem apenas pela metade, memórias prestes a desvanecer-se, retalhos de vida que importa reconstruir, reside o sentido da viagem. O percurso leva-os a atravessar a história recente de Moçambique, o estigma de sucessivas guerras sempre presente, a paisagem transformada por décadas de destruição e incúria. Do Chokwé a Vilanculos, do Chimoio a Maringue, a mesma realidade: Pessoas conformadas com uma situação de abandono, a desigualdade e as assimetrias cada vez mais presentes, os dilemas adensados pelo sofrimento anónimo. O final trará com ele algumas certezas, mas muitas dúvidas permanecerão.
Assente no diálogo entre narrador e um dos viajantes da carrinha, “Museu da Revolução” tem no real o seu ponto de partida. Nele, a ficção assume-se como um espaço de liberdade onde se forjam novas histórias destinadas a unir as pontas deixadas soltas por acaso ou porque sim. João Paulo Borges Coelho faz questão de assumir o jogo da escrita: “Se não sabes, inventa.” Narrador e “informador” trocam frequentemente impressões quanto à plausibilidade e adequação dos episódios ficcionados, moldados à medida das necessidades. Este “turismo da memória”, esta viagem a um passado que ecoa no presente, remete para a noção de museu a que o título do livro alude, obrigando-nos a ver cada uma das peças como parte de um todo. Um todo desagregado, imprestável, à semelhança do Museu da Revolução, privatizado e depois encerrado. O tom metafórico torna-se dominante, permitindo realçar os fundamentos da escrita de ficção. A arte de escrever “segura” o livro. No demais, estamos conversados.
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