CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #69
Escola de Artes e Ofícios
135 Minutos | Maiores de 14 anos
23 Fev 2023 | qui | 21:30
O Shortcutz Ovar regressou ao convívio dos amantes do melhor cinema em versão curta para a sua sétima temporada. Numa noite particularmente fria, foram muitos aqueles que trocaram o aconchego do lar pela bonita sala espande da Escola de Artes e Ofícios, sendo brindados com uma sessão que teve para oferecer animação, cinema documental, ficção e uma primeira obra. Mas antes, algumas novidades para esta nova temporada, a começar pelo júri Shortcutz que, para além do “residente” Leandro Ribeiro, dramaturgo e actor, contará com as contribuições da cantora Laura Rui e da criadora e intérprete Maria Leite. Também o Júri Jovem sofre mexidas, com a saída de Jorge Azevedo e as chegadas de Maria Manarte e Beatriz Santos. Um aspecto importante vincado por Tiago Alves corresponde a uma velha ambição e tem a ver com a possibilidade de vir a ser atribuído um prémio monetário ao vencedor do Shortcutz Ovar, eventualmente traduzido na rodagem de uma curta-metragem na nossa região. Mudança relevante para quem faz questão de aproveitar o momento de convívio após a exibição dos filmes, em 2023 a cidra e a cerveja tenderão a desaparecer e passará a haver espumante. Posto isto, vamos às curtas!
Muito distintos entre si de um ponto de vista formal, em termos substantivos há um elo a unir os três filmes exibidos e que pode resumir-se num “fazer do longe perto”. Seja através da memória, em conversas à volta da mesa ou numa caminhada de regresso a casa, seja pelo poder de uma lente de longo alcance, trazer para o presente aquilo que são as nossas histórias, os nossos lugares, aqueles que nos são queridos, é um compromisso que atravessa por igual as obras desta primeira sessão de 2023. Este aspecto torna-se particularmente evidente no filme que marcou o arranque da sessão, “O Homem do Lixo”, animação em 2D escrita e realizada por Laura Gonçalves, que documenta uma reunião familiar, o cruzamento das memórias de cada um a incidir nessa figura consensual que foi o tio Botão, um homem amado e admirado por todos. Explorando um mundo muito pessoal, fazendo da memória a força motriz deste seu filme, Laura Gonçalves aborda, com enorme sensibilidade, uma vida onde cabem a pobreza em tempos de ditadura, a guerra do ultramar, a emigração “a salto” para França, as férias em Belmonte onde cada dia era uma aventura. Combinado com uma deliciosa animação, o lado afectivo da história toca fortemente o espectador e faz de “O Homem do Lixo” um verdadeiro tesouro.
De um lado o cinema, o teatro e a performance; do outro a pesquisa, o ensaio, a escrita. É nestas áreas que se move “2ª Pessoa”, segunda obra com a assinatura de Rita Barbosa. Objecto difícil de classificar, algures entre o documentário e a ficção, o filme encerra um olhar intrusivo sobre a cidade e as pessoas que a constituem, pondo a nu a profunda solidão em que se encontram, reféns do passado e das memórias, umas boas, outras nem por isso. Em dezasseis minutos angustiantes, quase sufocantes, a realizadora envolve-nos numa enorme estranheza ao mostrar-nos a cidade como nunca a vimos, ao mesmo tempo que desfia um conto (narrado em “off” por Márcia Breia) que exalta o empoderamento da mulher e faz tábua rasa de todas as convenções. O texto que subjaz ao filme é precioso, levando o espectador a reflectir sobre o seu próprio presente e a concluir, como pode ler-se na sinopse, que “o cogumelo é o futuro”. Enfim, Rita Barbosa, uma realizadora interventiva, insubmissa, metediça, incómoda, avessa ao “certinho”, que importa seguir.
A fechar a noite, Falcão Nhaga trouxe-nos “Mistida”, filme de final de curso da Escola Superior de Teatro e Cinema e uma primeira obra com a qual esteve presente em Cannes na secção Cinéfondation, um panorama das escolas de cinema de todo o mundo. Com Bia Gomes e Welket Bungué nos principais papéis, o filme conta a história de um filho que ajuda a mãe a carregar para casa os sacos com as compras. Ao longo do caminho, as memórias vêm ao de cima e, com elas, as clivagens geracionais entre quem, na diáspora, vive e sente as suas origens de forma muito diferente. Fortemente metafórico, o filme faz deste caminho trilhado por mãe e filho um exemplo do que Guiné e Cabo Verde podem esperar do futuro se todos unirem esforços e apontarem na mesma direcção. Nesse sentido, o filme de Falcão Nhaga tem um significado político muito intenso, assente numa ambicionada cooperação intergeracional, a energia e a sabedoria de mãos dadas como motores de uma nova e progressiva sociedade. A cultura é outro factor de união entre todos, com a língua a desempenhar aqui um papel fundamental (o filme é falado em crioulo, espalhando o perfume de uma língua tão bela). Na paisagem urbana da periferia de uma grande cidade, num sítio que não foi feito para que as pessoas se sintam bem, aquela mãe à janela seduz-nos com o seu cântico de verdade e esperança e aponta caminhos de futuro.
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