CONCERTO: Paulino Vieira
Ao Sul do Mundo - 10º Aniversário
Centro Cultural de Belém
20 Fev 2023 | seg | 21:00
Paulino Vieira é uma figura lendária da música cabo-verdiana. Instrumentista, compositor, arranjador, produtor musical e cantor, teve uma presença marcante no início da carreira de Cesária Évora e a ele se devem momentos inesquecíveis e únicos, como a famosa rapsódia em torno de mornas conhecidas que juntou Bana, Dany Silva e muitos outros génios da música de Cabo Verde. Mas Paulino Vieira não é apenas um músico extraordinário; ele é também um pensador do mundo, um estudioso da música do seu país, um maestro de tantos músicos, um mestre de tantos artistas. Mais resguardado dos olhares do público num passado recente, o seu nome nunca deixou de ser mencionado, sendo clara a admiração que diferentes gerações nutrem pelo seu trabalho. Daí não espantar que tenha sido ele o eleito da promotora e plataforma cultural “Ao Sul do Mundo” para assinalar o momento de celebração do seu décimo aniversário. Um sonho tornado realidade na noite da passada segunda-feira, trazendo com ele uma sala esgotada de um público expectante com a oportunidade de poder ver ou rever o artista.
A abrir, a folha de sala declamada em palco, quase dez minutos a escutar aquilo que todos tinham podido ler à partida, uma opção infeliz que fez do “elogio do artista” um exercício redundante. Depois um momento com o seu quê de insólito, entre um improviso “clássico” ao piano e a busca de Rafa, um dos músicos, sentado na assistência. Quando, finalmente, estava “tudo a postos” para se dar início àquilo a que Paulino Vieira chamou o “ensaio geral”, meia hora já lá ía. Com “alegria, alegria”, a música fazia-se enfim ouvir, um saxofone ao jeito de um clarim a marcar o ritmo, devidamente acompanhado das palmas do público. Depois do segundo tema - um momento fortemente intimista, a voz a mostrar-se perfeita -, seguiu-se uma longa explicação sobre a génese do concerto, a chamada de alguns elementos da produção ao palco, o cantar os “parabéns a você” e depois, em resposta a uma pessoa do público, o desconcerto: “Aqui não há morna hoje.” Os risos ecoaram na sala mas houve quem não tivesse achado piada nenhuma ao facto. A prova é que, a partir desse momento, muitos espectadores foram abandonando a sala, cientes de que o prometido “desfilar de clássico atrás de clássico” não iria acontecer.
“Esperar dele normalidade é muito mais do que uma utopia. Paulino não é igual a ninguém”, disse um dia a jornalista Susana Rendall Rocha. Foi esta verdade que pude constatar, eu que “resisti” às quase três horas que durou o concerto. O que foi um prazer, devo dizer, tão extraordinárias a música e a voz, tão paradoxalmente simples e complexos o ritmo, a harmonia e a melodia. Não sei os títulos dos temas, não sei enquadrá-los neste ou naquele momento da carreira do artista. Sei - isso sei - que o alinhamento obedeceu a uma enorme coerência e que esta música tem um forte componente de soul e de zouk, mas também de funk e reggae, de samba e funaná. É a síntese perfeita de um conjunto de expressões e de influências, como se Paulino Vieira absorvesse toda a diáspora cabo-verdiana e desse a ver Lisboa e Milão, Roterdão e S. Vicente, num trecho multicolorido e singular. Foi bom ouvi-lo cantar, mas foi igualmente bom ouvi-lo falar em verdade, igualdade e justiça. Lembrar que há muita gente a passar fome e “tanto dinheiro gasto em raspadinhas”. Como foi bom ver que o concerto foi dedicado àqueles que permanecem nos bastidores e tão importantes são para que tudo corra bem, seja na sala de espectáculos, seja na grande cidade. Admito que uma boa parte do público se possa ter sentido defraudada com o concerto, mas para mim foi uma revelação!
[Foto: Luis M. Serrão | ineews]
Sem comentários:
Enviar um comentário