LIVRO: “O Segundo Coração”,
de Bruno Vieira Amaral
Edição | Francisco José Viegas
Ed. Quetzal Editores, Novembro de 2022
“Aquela criança, penso agora, morreu. Não teve direito a funeral, reparem. Só eu, que a choro quase todos os dias, lhe sinto a falta, incapaz de aceitar que a sua partida não tenha chocado ninguém, que não a lamentem. Tenho vontade de tirar cópias da fotografia e colá-las nos postes por toda a cidade, nas paragens de autocarro, à entrada dos supermercados: 'Alguém viu esta criança? Quem se lembra ainda desta criança, imortal, plena?’ ”
Com “As Primeiras Coisas”, Bruno Vieira Amaral ficou-me “no goto”. Veio depois “Hoje Estarás Comigo no Paraíso” e aí, em definitivo, entrou para a restrita lista dos “meus” escritores, aqueles que sigo e seguirei religiosamente, mesmo que o futuro me venha a mostrar que não valeu a pena o “apostolado". Seguiram-se, em modo crónica, “Manobras de Guerrilha” e “Uma Ida ao Motel e Outras Histórias”, e o encanto esmoreceu. “Integrado Marginal”, a biografia de José Cardoso Pires, marco na nossa literatura recente, fez redobrar a minha admiração por Bruno Vieira Amaral. E eis que, quase a fechar o ano de 2022, somos brindados com “O Segundo Coração”, de novo a crónica, de novo o olhar sobre si e sobre os outros, de novo as memórias a imporem-se num quotidiano com muito de dúvidas e muito pouco de certezas. Desta vez, porém, não há lugar ao desencanto. Há crónicas que são pérolas e, lido no seu conjunto, “O Segundo Coração” é exemplar na forma como nos vem dizer que a verdade de um - nas forças como nas fraquezas - pode ser a verdade de todos.
“O Segundo Coração” reúne um conjunto de crónicas escritas para a revista GQ e, mais tarde, para a edição digital do Jornal Expresso. Cobrindo um vasto arco temporal de cerca de cinco anos, o livro é composto por cem crónicas através das quais o autor revisita um conjunto de momentos que, de alguma forma, o marcaram e marcam ainda. Nessa busca, a memória desempenha um papel fundamental na forma como traz à superfície, de forma vívida, um quotidiano apenas banal na aparência, recheado de episódios que Bruno Vieira Amaral analisa e reinterpreta, mostrando o quão determinantes podem ser “as primeiras coisas”. Chamando, uma vez mais, os subúrbios da margem sul para primeiro plano, o autor dá-se a conhecer por inteiro, sem rodeios, sem auto-comiseração, sem pedidos de perdão. É tocante a forma como nos mostra o seu bairro, nos abre as portas de casa e nos fala de carência, sacrifício, sobressalto, exclusão. A noção do que é certo e do que é errado surge-nos nos pequenos gestos, nas acções mais comezinhas, nas palavras ditas de forma impensada, pondo a nu imperfeições, culpas e erros que se carregam toda uma vida.
Para aqueles que não conhecem o autor, “O Segundo Coração” pode ser uma bela porta de entrada no seu universo muito particular. Um universo no qual a ficção não goza do estatuto maior, onde o real se impõe com a força da sua verdade e das suas consequências. Não é a “grande” porta de entrada, mas conduz-nos por caminhos que se alargam à medida que os percorremos, que se mostram cada vez mais amplos e fazem com que o nosso olhar se projecte na distância que medeia entre as letras que se alinham e o nosso interior, o nosso coração. Ler “O Segundo Coração”, no meu caso, foi regressar ao tempo das intermináveis tardes a jogar caricas no pátio, das férias com os primos todos, dos dias de chuva que me aprisionavam em casa, das idas à praia de bicicleta, do primeiro dia de aulas no Liceu, dos amigos que nunca mais vi. Mas também das pequenas pulhices, do golpe baixo, da tacanhez, da cobardia, da cobiça e da maledicência. Estou certo que cada leitor fará, também, a ponte com muitas das passagens deste livro, ou talvez apenas algumas. De comum, estou certo, sobrará esse desejo de ser criança outra vez, para nos podermos, como Bruno Vieira Amaral, “espantar com as palavras”.
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