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quinta-feira, 28 de julho de 2022

TEATRO: "Ensaio Sobre a Cegueira"



TEATRO: “Ensaio Sobra a Cegueira”,
de José Saramago
Versão cénica | Clàudia Cedó
Encenação | Nuno Cardoso
Cenografia | F. Ribeiro
Figurinos | Nídia Tusal
Música | Pedro “Peixe” Cardoso
Interpretação | Ana Brandão, Adriana Fuertes, Albert Prat, Ferran Carvajal, Gabriela Flores, Jordi Collet, Jorge Mota, Lisa Reis, Mafalda Lencastre, Maria Ribera, Montse Esteve, Paulo Freixinho, Pedro Frias, Sérgio Sá Cunha
Produção | Teatre Nacional de Catalunya, Teatro Nacional São João
180 Minutos (com intervalo) | Maiores de 16 anos
Teatro Nacional de São João
19 jun 2022 | dom | 16:00


“Fazer a adaptação teatral de uma obra literária de que se gosta é um prazer indescritível. É um ato de amor e uma forma de aproximação íntima ao caminho emocional que o autor percorreu no momento da escrita. É como ir seguindo as suas pegadas na areia e compreender a sua excelência, as decisões que tomou, a feição dos seus sapatos e da terra sob os seus pés. Ler. Compreender. Reler. Compreender de novo. E traduzir todas as dobras de sentido para uma outra língua: a língua do teatro. Esta é a missão do dramaturgo. Garantir que o que o autor queria dizer permaneça intacto em algum recanto da cena, palpitando. Que as emoções que sentiu durante a leitura do romance as possa sentir o espectador assistindo ao espetáculo. Que as palavras (não todas, aquelas que sobreviveram ao trabalho de adaptação) que habitavam o livro e geraram tantas perguntas provoquem, agora, incógnitas similares no público, ao escutá-las vivas na boca dos intérpretes.”

Agora, que mais de um mês passou sobre aquela tarde de domingo no S. João, agarro-me às palavras que a dramaturga Clàudia Cedó deixou no Caderno de Leitura da peça, enquanto apelo à memória e recupero o viver e o sentir de um momento destinado a não deixar ninguém indiferente. Contraditórios, os sentimentos vêm em vagas, reforçando a admiração pelo trabalho dentro e fora do palco, mas também a frustração de perceber na versão para teatro a incapacidade em igualar a obra literária no que esta tem de criatividade, intencionalidade, intensidade e cariz visionário. Indo por partes, começaria pelo fascínio de um dispositivo cénico engenhoso, extraordinariamente versátil, que tanto nos abre as largas avenidas de uma cidade como nos enclausura no quarto mais esconso. Exímios nas personagens que interpretam, os actores vão-se desdobrando e, com isso, transmitindo a ideia de uma multidão em palco. Igualmente preciosos são os diálogos nessa estranheza de responder em português ao catalão e vice-versa, ampliando o caos.

Decidi reler “Ensaio Sobre a Cegueira” na semana que antecedeu a apresentação da peça. Foi um erro, sei-o agora. Ter toda a trama demasiado presente revelou-se nefasto, mostrando o quanto a versão cénica se cola ao texto, pouco ou nada lhe acrescentando. A obra, bem o sabemos, é impactante. O seu carácter de thriller mergulha o leitor no horror de uma distopia aberrante, mantendo-o em sobressalto da primeira à última página. Ao contrário, a peça nem por sombras nos transporta ao encontro de tanta desumanização, de tanta brutalidade. Pode estar lá a intenção, mas não logra ir além disso. Aquilo que de mais impressionante encontramos no livro, a imundície, a promiscuidade, o despudor, a falta de escrúpulos, o medo, esbarra num palco que se revela demasiado asséptico, por muito desorganizado e sujo que procure ser. Fica o exercício de teatro “puro e duro”, essas três horas recheadas de uma fisicalidade admirável. E fica, seguramente, a vontade de voltar ao livro, mesmo para aqueles que o conhecem de trás para a frente.

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