LIVRO: “As Pequenas Memórias”,
de José Saramago
Ed. Editorial Caminho, Outubro de 2006
“Lia na imprensa que aos combatentes de um lado se dava o nome de vermelhos e que aos outros os devíamos conhecer por nacionalistas, e como os jornais iam dando notícia das batalhas, com mapas algumas vezes, resolvi, como contei atrás, ter o meu próprio mapa, no qual, conforme o resultado dos combates, ia espetando bandeirinhas de cores diferentes, creio que vermelhas e amarelas, graças às quais julgava estar acompanhando, para usar a expressão consagrada, o desenrolar das operações. Até ao dia, que cedo foi, em que percebi que andava a ser ludibriado pelos militares reformados que se empregavam na tarefa de censurar a imprensa, fazendo suas, respeitosamente, a mão de ferro e a luva de veludo. Vitórias, só as de Franco, decidiam eles.”
Não deixa de ser surpreendente, já dobrados os 80 anos de vida, já depois de ter sido laureado com o Prémio Nobel da Literatura, num momento em que continuava a escrever com tanto vigor e a oferecer-nos livros tão intensos e vivos como “Ensaio sobre a Lucidez”, “As Intermitências da Morte”, “A Viagem do Elefante” ou “Caim”, que José Saramago nos surja com este “As Pequenas Memórias”. Desde logo porque representa uma inflexão na produção romanesca, género comum aos quatro livros citados anteriormente. Depois, porque estas “pequenas” memórias ganham forma numa escrita simples e directa, o adjectivo tendo sobretudo a ver com uma certa ideia de tempo, de cronologia, do que de vívido persiste no que toca à infância e à adolescência, e menos com o valor ou a importância dos factos narrados, seguramente marcantes, ou não acabariam, muitos deles, por alimentar a própria ficção. Mas também porque um escritor da sua craveira não poderia dar-se ao luxo de escrever um livro “menor” (e este parecia ter tudo para que assim pudesse ser visto).
Se é um facto que a liberdade criativa de José Saramago atravessa de forma inquestionável toda a sua obra, “As Pequenas Memórias” aparece-nos como a grande bandeira dessa verdade. Despido de quaisquer racionalismos, Saramago deixa-se envolver pela emoção ao mergulhar nas suas mais gratas memórias, devolvendo-as como se de poemas se tratassem. É assim na forma como recorda a Azinhaga, pequena povoação da margem direita do Almonda, onde nasceu no seio de uma família de camponeses sem terra. Será assim também ao falar-nos dessa Lisboa para onde foi levado com apenas dois anos, ao encontro de “outros modos de sentir, pensar e viver”. Nas quase cento e cinquenta páginas desta edição da Caminho, o autor passa em revista um tempo em que a maravilha das pequenas descobertas do quotidiano se misturam e confundem com as enormes dificuldades económicas sentidas pela família. Umas e outras acabariam por nortear os destinos daquele que é, até hoje, o único Prémio Nobel da Literatura da língua portuguesa, a quinta mais falada em todo o mundo.
Sem que o refiram de forma explícita, as muitas notas biográficas que sobre José Saramago se vão escrevendo têm em “As Pequenas Memórias” uma fonte incontornável, no que às primeiras duas décadas de vida do autor diz respeito. É lá que surge consubstanciado o seu amor à Azinhaga, autêntico “berço” onde a sua “gestação” viria a completar-se. É de lá que guarda as primeiras memórias dos pais, José de Sousa e Maria da Piedade, mas também dos avós maternos, Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha, misturando-as com “uma pedra, uma teia de aranha, a leiva de terra levantada pelo ferro do arado, um ninho abandonado, a lágrima de resina escorrida no tronco do pessegueiro, a geada brilhando sobre as ervas rasteiras.” Para além de ser um excelente contador de histórias e de possuir um enorme sentido de humor, José Saramago revela uma memória prodigiosa, mostrando-se exímio na forma como relaciona os factos entre si e os contextualiza de um ponto de vista social e político. Com pena viramos a última página do livro. Histórias assim podíamos ficar a lê-las uma vida inteira.
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