Apostado em vincar a aposta no desconfinamento, nessa ousadia de transpor as paredes da casa ou os limites do bairro e partir em busca dos grandes espaços verdes, a quarta sessão da sexta temporada do Shortcutz Ovar teve para oferecer três curtas-metragens onde a relação do homem com a natureza no seu estado mais puro constituiu o denominador comum. “Kumaru”, filme de animação realizado por Bruno Maravilha, Patrícia Santos e Tânia Teixeira, deu o mote para esta sessão, convocando um interessante conjunto de reflexões em torno de um estranho e enigmático ser que encontra nos pirilampos os únicos pontos de luz que conhece. O contexto pandémico e a vida do outro lado da janela servem de inspiração para um filme que joga de forma hábil com as várias dimensões das nossas vidas, servindo-se de um conjunto de metáforas para falar dos obstáculos que vão sendo superados e do caminho que cada um faz em direcção à luz. Particularmente activo no debate que se seguiu à apresentação do filme, o público deu mostras do seu apreço por uma obra que, na sua simplicidade aparente, trouxe consigo um conjunto de mensagens de grande significado e alcance.
Tal como no filme anterior, “Musgo” faz assentar o seu mecanismo narrativo nesta relação dicotómica entre a luz e as trevas, entre aquilo que vemos e o que apenas podemos intuir. Com “o terço na mão e o diabo no coração”, o filme é inspirado no livro “Etnografia Transmontana”, do “etnólogo, padre e bruxo” António Lourenço Fontes, ao encontro das expressões culturais e afetivas de herança pagã no norte de Portugal. No cerne da acção encontramos uma criança que, ao explorar o interior de uma árvore, é levada numa viagem mística que cruza o imaginário popular transmontano, abraçando por igual o sagrado e o profano. Misto de documentário e ficção, “Musgo” vive das pulsões da vida e da ancestralidade dos gestos, de cantigas de roda e Festas dos Rapazes, mezinhas caseiras e chegas de bois, alminhas e pontes do diabo. Com realização, argumento e montagem de Alexandra Guimarães e Gonçalo L. Almeida, “Musgo” arrecadou o Grande Prémio Nacional da última edição do FEST e é uma primeira obra arrebatadora, que nos obriga a manter debaixo de olho esta dupla de jovens criadores.
“Oso” fechou a sessão com uma “mirada” ecológica franca e uma boa dose de humor. Visto com cepticismo por uns e com entusiasmo por outros, o relato do avistamento de um urso-pardo no território do Parque Nacional da Peneda-Gerês permitiu ao realizador Bruno Lourenço (que assina também o argumento, em co-autoria com Telmo Churro) partir para uma ficção de aproximadamente meia hora, recheando-a de elementos que questionam factores primordiais como a identidade e o território. Contrapondo a visão lúcida de uma jovem vigilante da natureza às fantasias que se vão avolumando nas mentes de muitos dos habitantes da região e mesmo de alguns forasteiros, “Oso” abre espaço à imaginação, ao mesmo tempo dando conta do quanto de pernicioso, quase cruel, pode refugiar-se na sombra de uma natureza idílica. Com interpretação de António Mortágua e Sofia Pires, eis um filme empenhado em mostrar o quão dúbia pode ser a relação do homem com o espaço que o rodeia.
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