Projecto multidisciplinar envolvendo, para além da exposição propriamente dita, ateliers, oficinas, tertúlias, visitas guiadas, concerto/performance e cinema, “Sedimentos” é mais uma belíssima proposta a ocupar o espaço do Museu Júlio Dinis. Tal como sucedeu com “Desencapados”, a anterior mostra da autoria de Filipe Marcondes da Costa, também aqui se faz dos territórios íntimos e dos espaços da memória os pontos de partida de uma viagem emocional àquilo que fomos e somos. Convidando a despirmos o preconceito, o que Carla Cruz e Cláudia Lopes fazem é fornecer algumas ferramentas para que nos sintamos compelidos a escavar no mais fundo de nós, pondo a descoberto as camadas de que somos feitos. Uma verdadeira arqueologia da alma, um trabalho de rigor e paciência, surpreendente e emotivo, que ora nos confronta com o medo e a dor, ora traz à superfície a emoção dos dias felizes.
Concretamente, aquilo que nos é dado a ver, entre muitos outros objectos, é um pequeno galho, uma mão cheia de seixos brancos, marcas gravadas numa placa de grés, pedaços de caliça, cristais de quartzo, conchas do mar roídas pelo tempo, um fragmento de azulejo, fios e redes de pesca num novelo multicolorido, linhas num caderno, um livro sublinhado, placas de porcelana, lã tricotada, um colar de contas vermelhas. Olhamos as legendas de cada uma das peças e vemos tratar-se de constelações, fragmentos, glossários, colunas, memórias, recifes, medulas, contaminações. O nosso olhar, porém, devolve-nos em cada um dos objectos uma fisga no bolso de trás das calças, o jogo das cinco pedrinhas numa sombra junto ao rio, o fóssil de uma amoite que se esconde na mão, caminhadas à beira-mar, a redacção da terceira classe numa letra redonda, um colar de pérolas, a estrada de paralelo a caminho do Cais da Ribeira, sopa de feijão numa malga, o som calmante de um espanta-espíritos, chouriços ao fumeiro, um modelo tridimensional de DNA.
Não há visitantes iguais e aquilo que é visto por uns será visto diferentemente por outros. Talvez aqui resida um dos grandes fascínios da exposição. Outro aspecto verdadeiramente marcante desta mostra reside na forma como se buscou articular os objectos que a compõem com aqueles pertencentes a uma casa que é, para todos os ovarenses, também um símbolo. Perceber que não é por acaso que uma peça está num determinado sítio e não noutro, que a luz que atravessa uma divisão foi tida em conta ou que a disposição dos objectos em expositores obedece a uma lógica, é um desafio que o visitante deve abraçar. Repare nos objectos da casa como sedimentos também eles, busque o diálogo que se estabelece entre o antes e o depois, acrescente as suas vivências, a forma como brotam à superfície, adormecidas que estavam no mais fundo de si e verá o quão estimulante pode ser o exercício. “Sedimentos” irá estar patente até ao próximo dia 17 de Setembro e eu irei voltar. Imperdível!
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