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domingo, 26 de dezembro de 2021

LIVRO: "A Viagem do Elefante"



LIVRO: “A Viagem do Elefante”, 
de José Saramago 
Ed. Editorial Caminho, Outubro de 2008


“Quem é o salomão, perguntou o cura, O elefante chama-se salomão, respondeu o cornaca, Não me parece próprio dar a um animal o nome de uma pessoa, os animais não são pessoas e as pessoas tão-pouco são animais, Não tenho tanto a certeza disso, respondeu o cornaca, que começava a embirrar com a parlenga, É a diferença entre quem fez estudos e quem não os tem, rematou, com censurável sobranceria, o cura. Dito isto, virou-se para o comandante e perguntou, Dá vossa senhoria licença que eu cumpra a minha obrigação de sacerdote, Por mim, sim, padre, ainda que o elefante não esteja sob o meu poder, mas do cornaca. Em vez de esperar que o cura lhe dirigisse a palavra, subhro acudiu em tom suspeitosamente amável, Por quem é, senhor padre, o salomão é todo seu.”

Esta história começa em 1540, ano em que, no antigo Ceilão, nasce o elefante que viria a receber o nome de Salomão. Oferta do embaixador do Estado de Kotte, Sri Ramaraska Pandita, a Dom João III, Rei de Portugal, Salomão e o seu tratador, o cornaca Subhro, tiveram de enfrentar uma dura viagem por mar, até chegarem a Lisboa onde permaneceram durante dois anos num cercado de pau a pique em Belém. E se, nos primeiros tempos, tudo era festa e animação graças à curiosidade que o paquiderme despertava, os dois rapidamente se viram votados ao esquecimento, passando os dias vegetando, escutando ao longe o ruído das naus que largavam rumo às sete partidas do mundo ou, ali mais próximo, o lamuriento rezar dos monges Jerónimos. Oferecido em 1551 ao arquiduque Maximiliano de Áustria, genro do imperador Carlos V, Salomão encetará uma longa caminhada que o levará de Lisboa a Viena, com passagem por Barcelona, Génova, Milão, Trento, Bolzano, Innsbrück  e Wasserburg. Entretanto Salomão irá ver o seu nome mudar para Solimão enquanto o cornaca é agora Fritz.

A ideia de escrever “A Viagem do Elefante” surgiu a Saramago num jantar em Salzburg, no restaurante O Elefante. Duas pequenas esculturas de madeira postas em fila, uma das quais a Torre de Belém, chamaram a atenção do escritor. Ao inteirar-se desta história que remonta ao século XVI, Saramago encontrou um motivo suficientemente forte para se lançar na aventura de um novo livro. A escassa informação produzida em torno da viagem do elefante acaba por abrir caminho a uma escrita de forte pendor ficcional, Saramago investido numa condição tão ao seu gosto de jornalista, assumindo o papel de narrador desta história, ao mesmo tempo que se distancia o suficiente para, quase quinhentos anos depois, analisar factos e feitos bem ao seu jeito, a ironia a espreitar em cada comentário, as incongruências do género humano postas a nu nesse embate entre espécies, géneros, raças e credos. Como se, apesar do progresso e das novas tecnologias nos permitirem chegarmos hoje a Viena num par de horas, o viver e o espírito de muitos permanecer ancorado numa Idade Média insana, intolerante e obscura.

Sabe bem descobrir Saramago por estes dias. Depois de ter lido anteriormente “As Intermitências da Morte”, um livro desconcertante no seu desenvolvimento mas, sobretudo, um hino à vida, é sem surpresa que volto a descobrir um Saramago com uma imaginação prodigiosa, divertidíssimo com as partidas que vai pregando ao conjunto de personagens que se perfilam ante Salomão e o seu cornaca, de Dom João III e sua esposa, Dona Catarina de Áustria, às gentes que, nos campos, assistem à passagem de tão bizarra caravana. A grande actualidade da narrativa começa por sentir-se na forma como o elefante é “despachado” para o primo Maximiliano e prossegue com os constantes remoques à Igreja, reforçando aquilo a que o próprio Saramago designou por “neomedievalismo universal”. Magnífica viagem, esta, que abre ao leitor o advento de um mundo em que os seres humanos possam ser livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, proclamado como a mais alta inspiração do homem. Obra do ocaso de José Saramago, “A Viagem do Elefante” mostra-nos o quão fulgurante esse ocaso é.

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