LIVRO: “Deus Pátria Família”,
de Hugo Gonçalves
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Maio de 2021
“Pai, mãe e filho. Um juiz, a diretora da revista da Mocidade Portuguesa Feminina, um legionário com posto garantido nas Brigadas da Decência. A família orgulho do regime. E, ainda assim, tão diferente daquela que aparece, a cores, numa página da revista nas mãos de Pereira. Trata-se de um cenário doméstico popularizado pela propaganda. Na ilustração, o pai regressa a casa do trabalho na lavoura, tem uma enxada ao ombro e o chapéu na mão. A mesa está posta, há um crucifixo em cima do móvel. A filha pequena abre os braços ao pai, o filho levanta-se, respeitosamente, para o receber. A mãe, de avental, segura um tacho junto do fogo da lareira. No canto superior esquerdo: A lição de Salazar.”
Imaginativo, engenhoso, divertido, eficaz. É desta forma que adjectivo “Deus Pátria Família”, grata surpresa no final de um ano particularmente pródigo em leituras. Fundando o título deste seu mais recente romance na “trilogia da educação nacional” ao tempo do Estado Novo, Hugo Gonçalves oferece-nos uma narrativa cujo alcance ultrapassa em muito a “lição de Salazar”. O sentido literal do título impõe-se ao longo das quatrocentas e cinquenta páginas deste livro, escrutinando o sentido de cada um dos nomes em momentos particularmente sensíveis da nossa história recente. Mascarada de romance policial, a acção encontra a intolerância e o preconceito nos dogmas religiosos e nos choques culturais; envolve no fanatismo o apego a um lugar e a uma bandeira contrapondo-lhes as crises de refugiados e migrantes; e, exalta as relações familiares, defendendo os seus valores como o grande suporte moral de uma sociedade convulsa, mergulhada numa guerra que não acaba nunca. Um livro actual, portanto.
As primeiras páginas de “Deus Pátria Família” transportam o leitor à Lisboa de início dos anos 40 do século passado, uma cidade que se vai enchendo de refugiados judeus e que vê, embasbacada, mulheres loiríssimas, pernas nuas e saias pelo joelho, instaladas na esplanada da Pastelaria Suiça a fumar o seu cigarro. Da simpatia inicial à desconfiança generalizada, porém, irá um pequeno passo. O mal-estar face às posições dos tradicionais aliados britânicos é cada vez maior. Salazar exibe uma postura calculista perante os desenvolvimentos bélicos que afundam a Europa no caos. Os esbirros da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, precursora da PIDE, e os bufos da Legião Portuguesa, estão mais activos que nunca. Enquanto isso, uma série de crimes de contornos místicos, ocorridos sempre ao dia 13 e vitimando jovens mulheres, esperam por uma solução. De súbito, porém, o ano já é o de 1920 e a cidade é Nova Iorque, embora os protagonistas da história possam ser os mesmos. Tal como podem ser os mesmos os seus deuses e demónios, a noção de pátria ou a sua ausência, o apego à família ou o seu afastamento.
Depois de “Filho da Mãe”, Hugo Gonçalves volta a mostrar as suas enormes qualidades de escrita, sobretudo pela habilidade em misturar géneros, avançar e recuar no tempo e emaranhar umas nas outras as várias histórias que compõem este romance, sem nunca perder o pé. É de uma enorme inteligência a forma como, a seu bel prazer, se permite subverter os acontecimentos, mantendo uns e alterando outros, por vezes de forma drástica face àquilo que foi o curso da História. Piscando o olho ao leitor, convida-o a passear-se no campo das suposições e a remexer nas suas memórias, equilibrado nessa imprecisa linha que separa o real do ficcionado. Convite aceite, a narrativa interrompe-se para dar lugar à pesquisa, do projecto Bravo à figura de Rolão Preto, do “Julgamento do Macaco” ao refrão original de “A Portuguesa”. O livro chega ao fim e, com ele, a sensação de que poderíamos ficar eternamente em volta deste “tabuleiro” tão engenhosamente montado, a brincar o “jogo dos ses”. Sentado connosco à mesa, as peças ainda a mexer, Hugo Gonçalves fita-nos com o seu largo sorriso.
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