LIVRO: “Notas sobre Um Naufrágio”,
de Davide Enia
Texto original | “Appunti per un naufragio” (2017)
Tradução | Tânia Ganho
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Setembro de 2021
“Mas como se deixa morrer uma criatura acussì nica, uma coisinha tão pequenina? Nós, que mandamos gente para a Lua, temos mesmo de deixar morrer assim as pessoas? Não podemos fazer nada para ir buscá-las e trazê-las para cá? São ou não são seres humanos? Quanto tempo mais vai durar esta vergonha? Como se pode deixar morrer no mar uma coisinha tão pequena?”
O Mediterrâneo está hoje no topo da lista das rotas migratórias mais perigosas do mundo e isto não apenas pelo número de vidas perdidas no mar - estimadas em mais de vinte mil desde 2014 -, mas também pela violência exercida sobre migrantes e refugiados. Isto prova o quanto a Europa é um destino apetecido para quem foge da guerra e das perseguições em países como a Síria, a Eritreia, o Afeganistão, o Mali, a Gâmbia, a Nigéria, a Somália ou a Palestina, mas prova também a ausência de uma política de imigração consistente e de respostas rápidas aos pedidos de asilo, alimentando assim as redes de tráfico de seres humanos que, quando não morrem, chegam em profunda miséria às costas europeias. É com esta culpa e esta vergonha a pesar sobre todos nós, Europeus, que leio “Notas sobre Um Naufrágio”, do dramaturgo, actor e romancista italiano Davide Enia. Leio em sobressalto, como parte do drama que sou, as histórias de resgates e naufrágios vividas e sentidas com o coração apertado, uma raiva tão maior que uma mágoa, os nervos à flor da pele, as lágrimas a rebentar nos olhos.
Centrado em Lampedusa, “Notas sobre Um Naufrágio” dá-nos a ver a amálgama sem interpretação clara ou forma reconhecível que cabe naquela que é a mais meridional ilha europeia, a menos de trezentos quilómetros das costas da Líbia. É nessa “ilha-contentor” que palavras como migração, fronteira, naufrágio, solidariedade, marginalidade, resgate, milagre, heroísmo, desespero, suplício, morte e renascimento se revelam em toda a sua dimensão. Com este imenso drama em pano de fundo, Davide Enia convida-nos a conhecer aqueles que convivem com um quotidiano feito de dor e desespero, do pessoal de saúde à guarda costeira, dos voluntários das ONG aos simples pescadores. Rapidamente percebemos que todos eles carregam dentro de si um cemitério inteiro. Prepare-se o leitor para se tornar numa testemunha directa da parte obscura da história, para a quantidade de morte que irá ler na cara de quem menos se fala, para o desafio que o combate diário encerra: Não contra o mar, não contra o tempo, mas contra a própria morte.
E, no entanto, apesar de todo este sofrimento que nos é mostrado, continuamos incapazes de perceber o que está a acontecer. No fim de contas, o que é que mudou? Sabemos bem que nada mudou. Que a ascensão dos nacionalismos e dos populismos fazem com que se ergam mais barreiras e se reforcem mais muros num território que devia ser exemplo de paz e concórdia para o mundo. Importa, pois, olhar para esse símbolo no imaginário global que é Lampedusa, olhando para o mais fundo de nós mesmos em busca daquilo que podemos melhorar nas nossas vidas. Entramos aqui na segunda dimensão do livro, uma história onde o autor reinventa a relação com o próprio pai, um médico aposentado que testemunha, também ele, o drama que se desenrola debaixo dos seus olhos. Testemunharem juntos a tragédia dos migrantes irá ajudá-los a construir um diálogo de aproximação que substituirá todos os silêncios do passado. Profundamente humano, “Notas sobre Um Naufrágio” é um grito de revolta contra as injustiças e a maldade que campeiam neste mundo, mas é, sobretudo, um hino de exaltação à vida. A ler, absolutamente!
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