Começou ao rubro e terminou em euforia o concerto de Gilberto Gil no Cine-Teatro Avenida, em Castelo Branco, ao final da tarde de domingo, último dia de Outubro. De convicções firmes, alimentado apenas pelo seu talento e curiosidade, o baiano (nasceu há 79 anos em Salvador) tornou-se um dos cantores e compositores mais influentes da cultura brasileira, contando no currículo com mais de 70 álbuns publicados e a conquista de nove prémios Grammy. Foi este “monstro” da música brasileira e mundial que se mostrou em grande forma no palco do Avenida, na recta final de mais uma tournée europeia, rodeado pelos seus filhos Bem Gil na guitarra e voz e José Gil nas percussões, mas também pelos netos João Gil na guitarra e Flor Gil nos teclados, percussões e voz. Na bateria esteve Marcelo Costa, juntando-se ao grupo Adriana Calcanhotto com duas breves mas muito saudadas intervenções.
Percorrendo os caminhos de mais de meio século de carreira artística, Gilberto Gil levou a “torcida” numa viagem pelo mundo da sua música, o samba a marcar o ritmo. Do sertão à Bahia, de Roma a Nova Iorque, o veteraníssimo Gil mostrou uma forma incrível, contagiando todo o mundo com alguns dos seus temas mais conhecidos e pondo a sala inteira aos saltos desde o primeiro acorde. Cada palavra foi entoada com devoção, cada música saudada com emoção. O embarque fez-se no Bonsucesso, no “Expresso 2222”, e a partir daqui foi sempre a subir, “dizem que parece o bonde do morro do Corcovado”. Em festa, trabalho e pão, descontando os desatinos da vida, seguimos com “Viramundo” e, logo mais à frente, demos boleia a um “tio Sam de frigideira, numa batucada brasileira”, nesse contagiante “Chiclete com Banana”. Com Ary Barroso vimos o corpo embalançado da mulata – “É Luxo Só” –, mas antes travão a fundo. Olhamos pela janela e o que se abre ao nosso olhar é lindo demais: “Upa neguinho na estrada / Upa pra lá e pra cá / Vixi, que coisa mais linda / Upa neguinho começando a andar”. Edu Lobo e Elis Regina deitaram uma lágrima.
“Volare” e “I Say a Little Prayer”, trouxeram-nos Domenico Modugno e Burt Bacharach na voz de Flor Gil, neta do cantor. De tão fraca a voz e a presença da menina, com apenas 13 anos, diria que este foi um percalço na viagem, com a vantagem de não deixar grande mossa. Caminho retomado, mergulhámos em “Drão”, a suavidade duma balada sentida que nos veio falar de amores perdidos como sementes de ilusão, para de seguida nos apertarmos todos um bocadinho mais porque um novo passageiro chegou para animar (ainda mais) a festa. No meio de uma ovação apoteótica, Adriana Calcanhotto subiu ao palco para cantar Gilberto Gil, fazendo “A Paz” invadir os nossos corações. A sulista apresentou ainda “Elogil”, resultado de uma primeira parceria com Gilberto Gil, para terminar a sua apresentação com o tocante “Esquadros”, o mundo a abrir-se “pela janela do quarto, pela janela do carro, pela tela, pela janela.” Quem é ela?
A segunda parte do concerto teve a mesma força e emoção dos momentos anteriores, mas em dobro. Galvanizado, Gilberto Gil empunhou a guitarra e sambou no palco, puxando pelos espectadores. Palmas a compasso, a viagem prosseguiu com o enérgico “Fora Daqui”, que quem manda é a “deusa-música”. De seguida fomos a Paris gritar “Touche Pas a Mon Pote”, mergulhámos na polémica “doença de branco” com “Sabará Miolo” e saímos da “fossa”, de regresso do exílio, “Back in Bahia”. Novo irritante desvio com Flor Gil, para logo “Aquele Abraço” voltar a por os pontos nos is, a moça da favela e o mundo da Portela, o Realengo e a torcida do Flamengo juntos na viagem. Quem não quis ficar de fora foi Bob Marley, de quem se escutou “Stir it Up”, e Adriana Calcanhotto, que regressou ao palco com “Fico Assim Sem Você”, verdadeiro hino cantado a mil vozes. No “encore” escutou-se “Madalena”, “sentada numa pedra, comendo farinha seca”. E o mais é tudo aquilo que se queira, num concerto onde a força da música se impôs muito acima das expectativas. Saravá os irmãos brasileiros que acorreram em massa e ajudaram a compor um momento lindo e único. Saravá Gilberto Gil, um quase octogenário que cada vez mais é luz e inspiração.
Sem comentários:
Enviar um comentário