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domingo, 31 de outubro de 2021

LIVRO: "A Sangrada Família"



LIVRO: “A Sangrada Família”,
de Sandro William Junqueira
Ed. Editorial Caminho, Junho de 2021


“Teodoro Monteiro e Ezequiel Monteiro apaixonaram-se em simultâneo numa noite de Lua cheia por Filomena Capote. Passaram a odiar-se mais do que Abel e Caim. Do que Esaú e Jacó. A Bíblia foi o único livro que li. Cagaram e mijaram em cima da família. Cortaram ao meio o nome Monteiro. Adulteraram o nosso medronho. Fugiram com o vento. A troco de umas cuecas com o rato Mickey estampado, a cheirar a fatias de maçã. O amor torna as pessoas más. É o que é.”

Manuel Monteiro, Ezequiel, Teodoro, Filomena e uma obscura Babá. Cinco personagens para um drama de contornos universais onde coabitam cortes, árvores, astronomia, geadas, metanol, enganos, alquimia, denúncias, sangrias, famílias, isqueiros, incêndios, europeus e paixões. Onde se acumulam cobardias e a lamechice é subvalorizada. Onde a sobrevivência dos mais fracos é a mais forte das leis da natureza. Onde o coração é uma gaveta e o amor “um sociopata sem lábios”. Onde se esfolam joelhos no chão duro do infinito. Onde o nariz bate aos pontos qualquer instrumento científico e a adega onde se destila medronho é um útero por dentro da vida. Onde todos correm em linha recta quando lhes cheira a cuecas. Montecchios e Capotes. Monteiros e Capuletos. Esta história deve estar mal contada. O meu reino por um cavalo coxo. “É quase Shakespeare”.

Não. Não é quase Shakespeare. Mas Sandro William Junqueira parece querer lembrar-nos que as tragédias estão por toda a parte, em Verona como na Serra do Caldeirão. Através de uma escrita que se mostra ora poética, carregada de sublinhados linguísticos, ora de uma jocosidade que dispensa subterfúgios e vai directa ao assunto montada no calão seco e desabrido, o autor vai ao fundo da mais pura sátira, dela extraindo o suco que, destilado no enorme alambique da mente, inebria e faz com tudo possa ser visto de forma mais clara e nítida. Então talvez o leitor perceba que as nossas vidas não são assim tão diferentes umas das outras. Que as frases passam de boca em boca. De personagem em personagem. De saliva em saliva. De livro em livro. De acto em acto. “Repetimos a linguagem primordial. Repetimo-nos. Como as nuvens. Como os pratos de bacalhau.”

Quais actores numa peça de teatro, as cinco personagens vêm alternadamente à boca de cena falar de si. Do que vêem e do que sentem. Do que dizem e fazem. Nenhuma delas foi feita para ser boa. Gostam de provocar terramotos na cabeça e tsunamis no coração. Inquietos, ouvimo-las a mais o seu amor, o seu medronho, paz na guerra, terra e paz, sopas e descanso. Aproximarmo-nos do fim é aproximarmo-nos de um leito de morte. Há gente à nossa volta. Gente com a carne bem gasta, a pele seca. Atrás de cada ruga, um rosto. Atrás de cada rosto, um dia, uma estrela, um instante, um incêndio, uma história mal contada. O ar que se respira é o mesmo de há séculos. Contam-se as mesmas histórias. “Não interessa se aqui, se ali, se na serra, se no litoral, se no subúrbio, se para a frente, se para trás”. É tudo a mesma história. É tudo a mesma voz. Se não fosse isso, o autor não estaria aqui. Se não fosse isso, nós não estaríamos aqui.

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