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sexta-feira, 29 de outubro de 2021

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #53



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #53
Escola de Artes e Ofícios
90 Minutos | Maiores de 14 anos
28 Out 2021 | qui | 21:30


Que relação poderá haver entre o conjunto de obras exibidas na 53ª sessão do Shortcutz Ovar e o Alzheimer de Tony Bennett? A questão colocada a quente por Tiago Alves, sob a forma de um belíssimo vídeo onde Bennett reencontra Lady Gaga, pareceu encerrar um convite a que os três filmes fossem vistos com redobrada atenção. Mais do que a ver, a intenção do moderador destas sessões seria a de levar o espectador a escutar os filmes, o som que deles se desprende, numa revisitação aos lugares mais fundos da memória, onde se misturam o fogo e a água, o ar e a terra. Daí que o som tenha adquirido uma importância primordial nos filmes exibidos na noite de ontem e que, na primeira parte da sessão, a todos envolveu de forma intensa graças a uma chuvada diluviana a troar no telhado da Escola de Artes e Ofícios. Estariam os céus a fazer-nos a mesma pergunta? Será que também as brumas da nossa memória se alteram perante o som e a imagem que da tela emanam? Terá o cinema um efeito terapêutico? Os convidados na sala não avançaram com os seus palpites. Tampouco o público. Mas a dúvida revelou-se insistentemente, tornou-se existencial.

Existencialismos à parte, esta foi mais uma enorme sessão, marcada pelas presenças de Sebastião Salgado e Ricardo Teixeira, duas estreias no certame vareiro, mas também pelo reencontro com o realizador Luís Costa, vencedor do Prémio Melhor Curta-Metragem na edição de 2018 do Shortcutz Ovar, com o filme “O Homem Eterno”. Desta vez, Luis Costa trouxe-nos “O Nosso Reino”, uma ficção com a duração de quinze minutos, baseada no romance homónimo de Valter Hugo Mãe. Num misto de fé e de morte ante o olhar de uma criança, o filme tem a força de um poema visual, conduzindo o espectador por caminhos onde o instinto dita a sua lei e a aprendizagem da vida constrói-se no confronto com medos ancestrais mas também na indómita vontade de os vencer. Luís Costa mostra-se exímio na criação de ambientes claustrofóbicos, condicionando gestos e olhares a uma lógica de clausura, a um tempo parado, a uma circularidade onde tudo permanece igual. O trabalho de fotografia de Tiago Carvalho e Miguel da Santa é notável, assim como a interpretação do pequeno Afonso Lobo, no papel de Benjamim.

Também o segundo filme da noite trouxe com ele uma marca de intensa perturbação. Baseado em “Careful”, um conto minimalista do escritor norte-americano Raymond Carver, “Cuidado” mergulha nos ambientes da incomunicabilidade, da adição ao álcool, da dependência, da inação e da ruptura, dando-nos a conhecer Tiago, um quarentão desempregado que sobrevive rodeado das tralhas que foi acumulando ao longo da vida. “Uma náusea filmada”, assim o definiu Tiago Lobo, actor principal neste filme ao lado de Íris Cayatte, vincando o desconforto de alguém incapaz de sair do buraco para onde se arrastou. O som, tal como a sua ausência, têm aqui um papel fundamental, alimentando esta sensação esmagadora de quase alienação da personagem. O trabalho de imagem, da autoria de João Monge, e a própria música, escrita para este filme por Paulo Furtado  aka The Legendary Tiger Man, contribuem de forma decisiva para que a história se projecte no espectador, com tudo aquilo que tem de fascinante, mas também de abjecto.

No último filme da noite, Ricardo Teixeira parte de uma experiência traumática para explorar a forma como tudo pode mudar de um momento para o outro, nomeadamente a articulação com o mundo que nos rodeia. Esta é a história de Joana - excelente Inês Mendonça -, uma jovem mulher que após um acidente de viação se vê com sérias limitações na sua capacidade de comunicar. O percurso de reabilitação leva-a ao encontro da terapia da fala como forma de recuperar as capacidades perdidas, mas é na dança que Joana redescobre o prazer de existir. Optando por não levar até ao fim esse caminho da linguagem gestual, o realizador encontrou em matérias como a música e a dança uma forma de agarrar este seu “Um Som em Movimento”, deixando-nos uma mensagem esperançosa e inspiradora, carregada de verdade. A marca da incomunicabilidade, dos silêncios que se fazem ensurdecedores ruídos e que tão presente esteve nos filmes anteriores, voltou a passar por aqui, como que a fechar um ciclo de narrativas com muito pouco de convencional, mas através das quais o som nos transportou para “outras paragens”. Os espectadores terão encontrado a resposta à questão de Tiago Alves. Bennett e Gaga podem começar a trabalhar no terceiro álbum de duetos.

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