LIVRO: “O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues”,
de Ruy Castro
Ed. Tinta-da-china, Agosto de 2017
“Escrevo à noite. Vem na aragem noturna um cheiro de estrelas. E, súbito, eu descubro que estou fazendo a vigília dos pastores. Aí está o grande mistério. A vida do homem é esse vigília e nós somos eternamente os pastores. Não importa que o mundo esteja adormecido. O sonho faz quarto ao sono. E esse diáfano velório é toda a nossa vida. O homem vive e sobrevive porque espera o Messias. Neste momento, por toda a parte, onde quer que exista uma noite, lá estarão os pastores - na vigília docemente infinita. Uma noite, Ele virá. Com suas sandálias de silêncio entrará no quarto da nossa agonia. Entenderá nossa última lágrima de vida.”
Só os grandes biógrafos conseguem escrever assim. Ruy Castro aprendeu a ler com “A vida como ela é…”, o interminável folhetim publicado inicialmente no jornal “Última Hora”. Desde então seguiu-o pelos jornais e leu mais Nelson Rodrigues do que qualquer outro autor nacional ou estrangeiro. Assistiu a quase todas as suas peças, viu-o na televisão, na rua, em casa de amigos, no Maracanã e, em 1967, foi seu colega de trabalho no “Correio da Manhã”. Almoçaram juntos algumas vezes e chegou a entrevistá-lo. Este profundo conhecimento do biografado foi importante no momento de passar para o papel a vida de Nelson. Mais importante, porém, é a sua capacidade de reunir todas as personagens, de as dispor em palcos de cores vivas espalhados pelo Rio de Janeiro, de desdobrar as histórias e de trazer as suas emoções para as páginas do livro. Então, aproximando-se do leitor, coloca o braço suavemente sobre o seu ombro, olha-o nos olhos e conta-lhe histórias do jeito mais simples, quase brincalhão, com a linguagem do quotidiano onde abundam as palavras e as expressões que reconhecemos de telenovelas como “Gabriela” ou “Dona Xepa”.
Na sua extraordinária forma de percorrer os fios da História, o autor oferece-nos a possibilidade de entrever as linhas com que Nélson Rodrigues coseu 68 anos de uma vida plena. Para uns um génio ou um santo, para outros um canalha, um tarado, um reaccionário, Nélson Rodrigues fez parte dos jornais e revistas no berço, na plenitude e na morte. Atravessou todas as revoluções gráficas, estilísticas e empresariais da imprensa naquele período e acompanhou de perto todas as transformações políticas do Brasil. Numa delas, a de 1930, esteve no lugar da vítima. Conheceu de perto os poderosos e, ao mesmo tempo, era um homem identificado com o povo. A televisão tornou-o ainda mais popular, fazendo com que as pessoas passassem a ligar o nome à figura. E foi também o inventor do teatro brasileiro moderno, saboreando sucessos imensos a par de alguns fracassos. Tinha muito para contar e sabia contar como ninguém. Ruy Castro conta-o aqui na mesma medida, provando que, tal como na vida, também as biografias podem agigantar-se e revelar-se muito além das aparências.
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