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sábado, 13 de março de 2021

LIVRO: "Estuário"



LIVRO: “Estuário”,
de Lídia Jorge
Edição | Cecília Andrade
Ed. Publicações Dom Quixote, Maio de 2018


“Durante uma noite tinha preenchido quatro páginas de um caderno, e pela manhã encarara-se com uma fita de escrita muito abaixo do tom harmonioso com que havia sonhado. Já tinha percebido que não passava de um pobre aprendiz que declamava uma ode, e por isso se assimilara, na música e na cadência, a essa ode, mas não assegurava em si a sua continuação. Além disso, o seu oráculo jazia numa cama, ainda empurrava almofadas, mas já não lhe respondia.”

É em Dagahaley, um dos três campos de refugiados que formam o complexo de Dadaab, no nordeste do Quénia, que esta história começa. Edmundo Galeano, jovem português ao serviço da CARE, Organização Não Governamental parceira do ACNUR que presta apoio humanitário a cerca de 200.000 refugiados somalis, sofre um acidente, ficando privado de três dedos da mão direita. Com o indicador, o polegar e parte do metacarpo apenas, inicia um lento e doloroso processo de recuperação, fazendo da escrita o suporte da sua terapia. Distribuídas na superfície do papel com simetria invulgar, as letras juvenis vão-se alinhando moduladamente, à medida que no seu espírito cresce a necessidade imperiosa de escrever um livro, nele fundindo o passado, o presente e o futuro deste espaço a que chamamos Terra e de todos quantos nela habitam.

São múltiplas as leituras que “Estuário” oferece, a mais presente das quais será aquela que mergulha no nosso mais fundo e nos vem dizer que é justamente aí que começa este mundo dividido tal como o conhecemos. É certo que o livro aborda alguns dos grandes problemas que afligem a Humanidade, como a guerra, a fome, os deslocados e refugiados. Que está lá, também, a cidade com os seus ruídos, a vista sobre o rio, o chiar dos eléctricos nos carris, o correr anónimo das suas gentes. Ou, centrando o olhar mais na forma e menos no conteúdo, esse objecto dentro do objecto, essa forma de entretecer palavras e mostrar com que linhas se pode cozer um livro. Mas é na redução de um campo de refugiados a perder de vista ao espaço simples de uma casa, com os seus quartos e salas, os seus corredores e escadas a ligar os pisos entre si, as suas pessoas e as relações que entre elas se estabelecem, que a ficção se adensa para nos dar a nota de verdade do que de bom e de mau há em nós.

Com “Estuário”, Lídia Jorge volta a provar o quanto a literatura serve de base de reflexão sobre o espaço em volta, buscando sentido para um quotidiano feito de fragilidades e ameaças. “E se o perigo somos nós?”, parece perguntar a escritora, à medida que convoca os lugares da memória onde se abriga um mapa cujas linhas mostram as dobras do tempo. É nelas que coabitam, em precário equilíbrio, as forças e fraquezas do ser humano, as suas grandezas mas também os seus medos. No presente pandémico que enfrentamos, este livro resgata do silêncio os contornos mais sensíveis da realidade, oferecendo-nos um testemunho notável sobre a vulnerabilidade humana. “Ah, os piratas! os piratas! A ânsia do ilegal unido ao feroz, a ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis, que rói como um cio abstracto os nossos corpos franzinos, os nossos nervos femininos e delicados, e põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!”

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