Páginas

domingo, 14 de março de 2021

LIVRO: "O Livro do Deslembramento"



LIVRO: “O Livro do Deslembramento”,
de Ondjaki
Ed. Editorial Caminho, Julho de 2020


“eu a olhar o olhar da tia Tó toda orgulhosa, como ela dizia, da minha língua portuguesa, às vezes ela perguntava-me onde é que eu ia buscar tantas ideias, se eram de verdade ou inventadas, eu tinha que lhe explicar outra e outra vez que em Angola não era preciso inventar nada, ou a cidade te dava as estórias, ou a rua, ou a escola ou então havia sempre uma caixa cheia de estórias em cada família”

Repetindo a fórmula de alguns dos seus anteriores romances – de “Bom dia Camaradas” ou “Quantas Madrugadas Tem a Noite” a “A Avó Dezanove e o Segredo do Soviético” –, é aos lugares felizes da infância que Ondjaki vai buscar as estórias que alimentam este livro. Cobertos com a patine da ficção, estes “deslembramentos” são páginas de vida onde cabem Ndalu de Almeida, mais conhecido por Ondjaki, e todos aqueles que acrescentaram, das mais variadas formas, o conhecimento e as influências às suas brincadeiras e risos de menino.

No seu jeito próprio de contar, Ondjaki relata as aventuras e os enredos que marcaram a fase da aprendizagem e, em grande medida, o tornaram naquilo que é hoje, ao mesmo tempo revelando os dilemas e contradições de uma sociedade liberta do jugo do colonialismo para logo mergulhar numa Guerra Civil fratricida. Tomando como protagonistas da acção o círculo familiar mais íntimo e os amigos chegados, o autor privilegia o diálogo em detrimento da acção, a casa como um reduto fortificado onde tudo se passa, a linguagem como arma de ataque e de defesa, repleta de variantes engenhosas e dos mais delirantes trocadilhos e subentendidos.

Os mais familiarizados com a obra de Ondjaki tenderão a relativizar o valor deste livro. Percebe-se que, em pé de igualdade com os anteriores, “O Livro do Deslembramento” sai a perder, porquanto nele sobressai muito pouco de novidade. Mas para quem só agora toma contacto com o escritor angolano, é todo um mundo novo que se abre, de cores, cheiros, sabores e emoções feito. É tempo de rir com as tiradas do tio Chico, espreitar as calças no sovaco do senhor Osório e escutar o ronco da mulher do Mogofores. De sentar a uma mesa onde há sempre comida para mais um, assistir a mais um episódio do Roque Santeiro e beber uma cerveja bem gelada. Tempo de celebrar a língua portuguesa, o mais elevado valor da lusofonia, no que ela tem de diversidade, plasticidade e multiculturalismo.

Sem comentários:

Enviar um comentário