Páginas

sábado, 27 de março de 2021

LIVRO: "Caim"



LIVRO: “Caim”,
de José Saramago
Ed. Editorial Caminho, Outubro de 2009 (5ª edição, Novembro de 2009)


“Abel tinha o seu gado, caim o seu agro, e, como mandavam a tradição e a obrigação religiosa, ofereceram ao senhor as primícias do seu trabalho, queimando abel a delicada carne de um cordeiro e caim os produtos da terra, umas quantas espigas e sementes. Sucedeu então algo até hoje inexplicado. O fumo da carne oferecida por abel subiu a direito até desaparecer no espaço infinito, sinal de que o senhor aceitava o sacrifício e nele se comprazia, mas o fumo dos vegetais de caim, cultivados com uma amor pelo menos igual, não foi longe, dispersou-se logo ali, a pouca altura do solo, o que significava que o senhor o rejeitava sem qualquer contemplação.”

Primeiro livro, tanto da Bíblia hebraica como da Bíblia cristã, o Génesis lança o olhar sobre a criação do mundo, estendendo-o à fixação do povo judeu no Egipto. É nas suas páginas que encontramos a história de Abel e Caim, os dois primeiros filhos de Adão e Eva, um pastor e o outro lavrador. Na altura de ofertarem os seus sacrifícios, Abel ofereceu a Deus as primícias do seu rebanho, enquanto Caim Lhe entregou o melhor dos seus frutos. Deus, porém, tomou apenas como bom o sacrifício de Abel, gerando em Caim um sentimento de inveja e raiva incontida, levando-o a assassinar o irmão. Condenado por Deus a errar pelo mundo, assinalado na testa pelo mal que fez sem que disso mostrasse arrependimento, Caim encontrará uma mulher de quem terá um filho e será o fundador da primeira cidade sobre a terra.

Envolta em controvérsia, a história de Abel e Caim encerra um conjunto de questões de difícil compreensão, levando os mais cépticos a duvidar das verdadeiras intenções de Deus. É no grupo daqueles que não conseguem ver apenas dádiva, bondade e misericórdia nas acções do Criador, que se insere José Saramago, autor deste “Caim”, um livro que surge na linha de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e que, tal como ele, sofreu fortes críticas da Igreja Católica e de grupos de direita à data da sua publicação. Abrindo caminho à imaginação nesta deambulação de Caim pelo mundo, Saramago lança um olhar irónico sobre o Velho Testamento, ao encontro de alguns dos seus episódios mais sangrentos, do sacrifício de Isaac por seu pai Abraão ao fogo lançado sobre as cidades de Sodoma e Gomorra, da fúria de Moisés ao descer do Monte Sinai com as tábuas da Lei ao martírio de Job ou à terra destruída sob as águas do Dilúvio.

É contra a “peregrina ideia de que deus, só por ser deus, deva governar a vida íntima dos seus crentes, estabelecendo regras, proibições, interditos e outras patranhas do mesmo calibre”, que José Saramago se insurge, detendo-se nas figuras da história da Bíblia para melhor fundar o seu pensamento. A espaços, a linguagem é rude, chegando a roçar domínios do blasfemo e do herético, o autor pretendendo, desta forma, fugir dos antros canónicos onde se evita aquilo que é suposto não ter discussão e, “descendo à terra”, partilhar com o homem comum a sua visão e as suas ideias. É sobre este eixo que conseguimos perceber o autor e encarar “Caim”, adivinhando em Saramago uma enorme inquietação sobre a verdade que nos é imposta, tanto em termos materiais como nos domínios da fé. Com este livro, o autor atreve-se a raspar a superfície das coisas, adivinhando uma realidade outra que importa compreender para melhor a aceitar. Ou não.

Sem comentários:

Enviar um comentário