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domingo, 28 de março de 2021

LIVRO: "Almoço de Domingo"



LIVRO: “Almoço de Domingo”,
de José Luís Peixoto
Edição | Francisco José Viegas
Ed. Quetzal Editores, Março de 2021


“Quando acumulamos suficiente tempo, os domingos transformam-se num período da vida. Recordamos os domingos como uma unidade, anos inteiros só de domingos, estações inteiras compostas apenas por domingos: os domingos do verão, os domingos do outono, todos os domingos do inverno e, de novo, as promessas feitas pelos domingos da primavera. Foram dias separados por semanas, antecedidos por sábados com ilusões próprias, sucedidos por segundas–feiras com agendas precisas, tarefas fatais que exigiam ser feitas, mas tudo se dissipa até ficar apenas uma amálgama de domingos. Ao serem vividos, transformaram-se nessa amálgama, como um almoço de domingo infinito, a crescer permanentemente a partir do seu interior.”

Antecipando em três dias o assunto que lhe serve de título, “Almoço de Domingo” chegou às livrarias na passada quinta-feira e essa será, porventura, a primeira das suas singularidades: conceder ao leitor a hipótese de seguir os passos de alguém numa dimensão temporal paralela à sua, acompanhando as suas rotinas, os seus gestos mais simples, as suas obrigações, os seus pensamentos. Assim tratado, entre o palpável e o etéreo, o tempo transforma-se na principal figura deste livro, carregando em si mesmo a ideia de que “só existe quando paramos”. A segunda singularidade tem a ver com o senhor Rui, figura de carne e osso que assume o papel principal no palco de uma vida, confiando as suas histórias e memórias ao cuidado de José Luís Peixoto para que as transforme em romance biográfico. A terceira singularidade é a de que este almoço de domingo, cujos preparativos decorrem na altura em que escrevo estas linhas, terá lugar dentro de poucas horas e assinalará os 90 anos de vida do senhor Rui, juntando à mesa a sua mulher Alice, os filhos do casal e respectivos cônjuges, os netos e os bisnetos. Também alguns ilustres convidados, entre eles o próprio escritor deste livro.

O senhor Rui a que o livro se refere é Manuel Rui Azinhais Nabeiro, nascido no seio de uma família humilde nos idos de Março de 1931 e hoje um bem sucedido industrial do café, com a conhecida marca Delta Cafés, para além de investimentos no ramo agrícola e vitivinícola, na distribuição alimentar e de bebidas, no retalho automóvel, no comércio imobiliário e na hotelaria. Na base deste livro estão as suas conversas com José Luís Peixoto – cujo propósito inicial seria o de escrever uma biografia –, a cujo resultado o autor acrescentou horas e horas de investigação. Aos poucos foi desvendando um mundo onde cabem as dificuldades económicas nos tempos da infância, os ecos da Guerra Civil de Espanha e os negócios do contrabando na raia, o pulsar de uma vila perdida do interior sul de Portugal, o amor que se abriga em cada flor de papel nas Festas do Povo, histórias de partidas e de chegadas dos entes mais próximos, as sombras do Estado Novo, os brados de uma nova era que Abril abriu.

José Luís Peixoto volta a surpreender-nos com a sua enorme criatividade e a excelência da sua escrita. Dele é o mérito de imprimir ao livro um cunho temporal cativo da memória, sem ordem cronológica definida, feito da circunstância e do acaso. Dele é o mérito, igualmente, de prender o leitor à vida deste senhor Rui, homem cativante e pelo qual não conseguimos deixar de sentir uma admiração crescente à medida que vamos virando as páginas do livro. Nas atitudes e nos gestos mais simples é nele que nos revemos: Na bucha que come durante a inauguração da ponte sobre o Tejo e que reparte com dois deputados da Nação, na frustração pela derrota do Campomaiorense na final da Taça de Portugal ante um superlativo Beira-Mar, na apreensão das mulheres quando lhes anuncia que no dia seguinte terão a almoçar em Campo Maior o Felipe Gonzalez e o Mário Soares ou no nó preso na garganta na hora da partida do pai, da irmã Clarisse ou do amigo mais sincero.

Porque é de tempo que o livro nos fala, ele é também um convite a percebermos o valor que damos ao nosso próprio tempo e àquilo que com ele fazemos. O que o conforma e o que o condiciona. O porquê de passar tão devagar em certos momentos e de correr noutros à velocidade da luz. As memórias que nele cabem e quanto de verdade existe nessas memórias. Quanto desse tempo é partilhável e quanto desapareceu, perdido para sempre na inevitabilidade das suas dobras. Que dimensões abrigamos no nosso trajecto de vida e que nos leva a olhar para o passado e a começar as frases por um irritante “no meu tempo”. Nos reflexos da vida deste homem, o senhor Rui, descobrimos um mundo de reflexos de nós próprios, aqui residindo a grande virtude deste livro. José Luís Peixoto tem este dom de nos pôr a pensar sobre o que fomos e somos, sobre os propósitos da nossa presença neste mundo. Foi assim em “Morreste-me” como em “Galveias”, em “Em Teu Ventre” como em “Autobiografia”. Por isso lhe agradeço e lhe dou os parabéns. Parabéns que estendo ao senhor Rui, no dia do seu aniversário. Longa vida, senhor Rui!

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