LIVRO: “Memórias da Plantação – Episódios de Racismo Quotidiano”,
de Grada Kilomba
Texto original | “Plantation memories: Episodes of Everyday Racism”, 2008
Tradução | Nuno Quintas
Ed. Orfeu Negro, Julho de 2020 (1ª edição, Maio de 2019)
“O que foi a Conferência de Berlim de 1884/1885? Que países africanos foram colonizados pela Alemanha? Quantos anos durou a colonização alemã no continente africano? Termino com perguntas mais específicas: quem foi a rainha Nzinga e que papel desempenhou no combate à colonização europeia? Quem escreveu “Pele Negra, Máscaras Brancas”? Quem foi May Ayim?
Não surpreende que a maioria das/os alunas/os brancas/os sentadas/os na sala não consigam responder, ao passo que as/os alunas/os negras/os respondem à grande parte delas. De repente, quem por regra é invisível torna-se visível, e quem é sempre visto torna-se invisível. Quem por regra é silencioso começa a falar, enquanto quem sempre fala fica em silêncio. Em silêncio não porque não pode articular a voz ou a língua, mas porque não tem esse conhecimento. Quem sabe o quê? Quem não sabe? E porque sabe?”
Com uma escrita apaixonada, intensa e impulsiva, rica de imagens e significados, Grada Kilomba obrigou-me a deter-me no significado de termos como sujeito e objecto, a/o outra/o, escravizada/o, subalterna/o, negra/o, mestiço, mulato ou cabrita. Ao encontro das definições, sua origem e implicações, fui sendo assaltado por sentimentos contraditórios, instalando-se em mim a culpa. Também a vergonha. Sobretudo a vergonha. No meu discurso, nas minhas atitudes, não posso deixar de reconhecer todos os episódios de racismo quotidiano de que nos fala Grada Kilomba. É inútil negá-lo, apenas estaria a enganar-me a mim próprio. Corajosa, determinada, a autora toma-me pela mão e pede-me que escute: “Quando gostam de mim, dizem-me que é apesar da minha cor. Quando me detestam, acrescentam que não é por causa da minha cor. Sou, em ambos os casos prisioneiro.” Esta e outras revelações dão-me a perceber o quanto lavro no erro quando, confrontado com a ideia de racismo, formulo a habitual pergunta moral “sou racista?” e fico à espera de uma resposta confortável. Errado. Eu, o sujeito branco, devo antes perguntar-me “como posso desmontar os meus próprios racismos?”, pois é a interrogação em si mesma que dá início ao processo.
Enquanto académica, Grada Kilomba questiona-se: “Como posso eu, enquanto mulher negra, produzir conhecimento num palco que constrói sistematicamente os discursos das/os académicas/os negras/os como sendo menos válidos?”. Atirada para a periferia, longe dos centros de todas as decisões, a norma definida pelo homem branco, as suas dúvidas parecem irresolúveis. Dá voz a outras mulheres e as dúvidas persistem, agravam-se. Instala-se a dor, a desilusão, a raiva também, as máscaras continuamente sobre a boca, as feridas que não fecham, “dizer o silêncio” como um ditame. É através de todas estas mulheres que sou confrontado com a política do espaço, a política sexual, as políticas da pele e do cabelo, a segregação, o contágio racial, a encenação da negritude, os traumas, o suicídio. À medida que os assuntos vão sendo abordados, vai aumentando a incomodidade do leitor (leitor branco, entenda-se), incapaz de não ver o que é óbvio, de aceitar o inaceitável. É nesse sentido que o livro se impõe, a escrita desta jovem autora convidando à acção. No final, fica essa ideia muito forte de que a escravatura e o colonialismo podem ser tidos como coisas do passado, mas continuam intimamente ancorados no presente. Um presente assombrado pelo passado intrusivo da escravatura, a história a perseguir a pessoa negra porque não foi bem sepultada. Como outros grandes autores, Grada Kilomba ajuda a ressuscitar a vida dos antepassados, rememorando a dor da escravatura e contando-a bem. A escrita é, nela, o ressuscitar de uma experiência colectiva traumática e o seu enterro. Este é o único caminho rumo a uma nova história, a um novo futuro.
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