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sexta-feira, 26 de março de 2021

LIVRO: "Flecha"



LIVRO: “Flecha”,
de Matilde Campilho
Ed. Edições Tinta-da-china, Agosto de 2020


“Um grupo de formigas faz o percurso encarreirado entre o musgo e o buraco. Cada uma delas leva alguma coisa às costas: um pedaço de casca de árvore, uma pata de besouro, um resto de palha, uma outra formiga já cansada, um grão de terra, uma lasca de concha. Um rapazinho, de cócoras, observa o movimento daqueles bichos pretos e analisa – à vez – cada vestígio de vida que se move à boleia de outra vida.”

“Flecha” é um livro de histórias. Duzentas e vinte e seis histórias, para ser mais preciso. Umas que se espraiam por duas páginas (nunca mais do que isso), outras resumidas em uma ou duas linhas apenas. Histórias que nos falam de coisas vivas e de coisas mortas. Que nos trazem paisagens, objectos, bichos, rostos, deuses. Que nos convidam a ver, a escutar, a sentir: uma praia de Cabo Polónio, as traseiras do mercado de Michoacán, um rosto marcado pelo sol, esplêndidos automobilistas, um avião que já iniciou o seu trajecto há mais de oito horas, o cavalo do primeiro-ministro, bandos de morcegos, uma lebre, um bezerro, um mosquito, um relâmpago. E a conhecer pessoas como David, Constantin ou Lídia, um esquimó, o pai de Aurélia, um menino de olhos negros, um guerreiro aqueu, o vigilante do Museu do Ouro, uma menina de estrela branca.

“Entre o sono e a vida, um dia de cada vez, caminhando sobre a caruma, vamos escutando e contando histórias. Uns aos outros, a nós mesmos, e àqueles que vêm depois de nós”. Inscrito na tradição oral de passar as histórias de geração em geração, “Flecha” abre-se em recados de amor à vida, nos seus “milhões de feitiços, não isentos de medo”, os sonhos apontados ao dia seguinte. Preenchendo um território tão vasto quanto o universo, as histórias brilham com o fulgor de um cometa, deixando no seu rasto símbolos, premonições, visões ou apelos. Delicadas e sensíveis como a flor da peónia, reflectem o olhar de quem vê com a alma, as imagens a nascerem de mil formas e cores, a vingarem muito além das palavras e a alojarem-se no nosso mais profundo, nesse lugar a que chamamos coração.

Pequeno em tamanho, quase um livro de bolso, mas enorme naquilo que tem para nos contar, “Flecha” é, para mim, a descoberta de uma autora fantástica. De Matilde Campilho percebo que editou em 2014 “Jóquei”, livro de poemas que recebeu excelente acolhimento. Suspeito que um e outro estarão fortemente ligados. Em “Flecha”, tal como em “Jóquei”, tudo é poesia. Na maneira como aborda os enigmas que conformam as nossas vidas, como mergulha nas tensões do nosso espaço interior, como o povoa de signos e sinais, Matilde Campilho traz a poesia para dentro destas pequenas histórias, convidando cada um de nós a descobrir-se a partir de alguém ou de alguma coisa, a partir de fora do “eu”. Cada história é um convite. Tão íntimo como um beijo no escuro.

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