Páginas

sábado, 20 de fevereiro de 2021

LIVRO: "De Profundis, Valsa Lenta"



LIVRO: “De Profundis, Valsa Lenta”,
de José Cardoso Pires
Ed. Herdeiros de José Cardoso Pires e Publicações Dom Quixote, 1997 (Ed. Editora Planeta DeAgostini para a presente edição, 2001)


“Paredes mansas, as tais paredes em alvura-pérola; por entre elas, os sons, as figuras e o tempo, tudo num deslizar suave, sem densidade. Eu, em pessoa de coisíssima nenhuma, cumpria as tardes de hospital num vaguear inocente. Mesmo assim, aconteceu saltar-me ao caminho o meu nome. Saltou-me poucas vezes é certo, três ou quatro se tanto mas era um nome que andava a monte repetido e desfigurado nos ficheiros da terapia da fala. Um nome a acenar-me a acenar-me José José José numa espécie de provocação à distância José que nome tão feio considerava eu.”

Quinta-feira, 12 de Janeiro de 1995. José Cardoso Pires senta-se à mesa do pequeno-almoço, “em roupão e de cigarro apagado nos dedos”. Embora calmo, traz consigo uma palidez de cera. Pensa que terá dado os bons dias. Lembra-se da manhã cinzenta, de escutar as pessoas a falar não sabe de quê, de percorrer com o olhar a sala, “o chão, as paredes, o enorme plátano por trás da varanda.” Parou na chávena de chá e ficou. Que se sentia mal, nunca se tinha sentido assim, murmurou numa fria tranquilidade. Naquele momento preciso estava em curso um ataque, aquilo a que a ciência chama um Acidente Vascular Cerebral e que o povo, genericamente, designa como uma “trombose”. Um transtorno do cérebro de consequências imprevisíveis. De repente, um pequenino coágulo de sangue alojava-se no cérebro do escritor, roubando-lhe as suas relações com o mundo e consigo próprio.

Pegando nesta experiência de vida marcante, José Cardoso Pires escreve, dois anos depois, “De Profundis, Valsa Lenta”. Um livro exemplar a todos os títulos, desde logo pela sua singularidade, visto ser escassa a produção literária sobre esta matéria. A explicação é simples, como refere o Professor João Lobo Antunes, na “Carta a Um Amigo Novo” que abre este livro, em jeito de prefácio: “É que [a doença vascular cerebral] seca a fonte de onde brota o pensamento ou perturba o rio por onde ele se escoa, e assim é difícil, se não impossível, explicar aos outros como se dissolve a memória, se suspende a fala, se embota a sensibilidade, se contém o gesto.” Concomitantemente, temos o génio de José Cardoso Pires, a exemplaridade da sua escrita, a linguagem expressiva e as metáforas de que se socorre nesta espécie de provocação à memória, nesta finta à insensibilidade, à apatia, à ausência de afectos. Nesta busca de lhes dar forma, cor, temperatura, de vestir de emoções aquilo que designou por “morte branca”, o vaguear ausente numa espécie de galeria sem história, um limbo sem tempo, sem rostos, sem identidade. Anónimo de si.

Resistir à tentação literária de fugir para a fantasia e escrever com grande reserva, com um enorme pudor, eis outro dos grandes méritos de José Cardoso Pires neste seu livro. Com distanciamento introspectivo e uma linguagem capaz de descrever o indefinível, o autor oferece-nos a “memória de uma desmemória”, testemunho único de clareza e lucidez feito, que espanta e comove. Testemunho que é também uma prova de humildade de quem pressente o quanto a sorte tem uma palavra a dizer nestes enormes imbróglios, mas que ainda assim se sente no dever de fazer desta crónica “um desabafo de gratidão pela competência e pela solidariedade que me foi prestada no meu internamento hospitalar.” Santo Agostinho diz-nos que “por mais que o homem se mova, corre sempre sobre a imagem de si próprio.” É tão bom ver José Cardoso Pires voltar a correr sobre a sua imagem, a contar, como só ele sabe, os passos de uma corrida que, ironicamente, tem os passos contados.

Sem comentários:

Enviar um comentário