LIVRO: “A Guerra não Tem Rosto de Mulher”,
de Svetlana Alexievich
Texto original | “U vojny ne ženskoe lico”, 2013
Tradução | Galina Mitrakhovich
Ed. Elsinore, Setembro de 2016
“Só mais tarde, passados trinta anos, começaram a homenagear-nos... A convidar-nos para vários encontros... Mas nos primeiros tempos ocultávamos tudo, não usávamos condecorações sequer. Os homens usavam, as mulheres não. Os homens eram vencedores, heróis, moços casadoiros, eles tiveram uma guerra, para nós toda a gente olhava com outros olhos. Bem diferentes... Digo-te mais, arrebataram-nos a vitória. Trocaram-na discretamente pela simples felicidade feminina.”
Nascida na Bielorrússia três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, Svetlana Alexievich parte em busca da compreensão da realidade de um conflito que, em cerca de quatro anos, roubou à mãe pátria russa mais de vinte milhões dos seus melhores filhos. O objectivo da autora centrou-se em conseguir, acima de tudo, a verdade daqueles anos. Daqueles dias. Sem falsificar os sentimentos. “Historiadora da alma”, assim se assumiu, disposta a não escrever sobre a guerra, mas sobre o ser humano na guerra. A não escrever a história da guerra, mas a história dos sentimentos. Para tal entrevistou centenas de mulheres ex-combatentes ao longo de todo o território da outrora União Soviética, registou as suas palavras, fixou as entoações. As pausas. O choro e o desconcerto. E ofereceu-nos histórias de vida. As próprias vidas destas mulheres, os seus “textos”.
Será possível que mulheres de dezoito ou vinte anos durmam meses e meses nas trincheiras improvisadas ou na terra nua junto a uma fogueira, andem de botas e capotes militares, não riam, não dancem? Não usem vestidos de Verão? Esqueçam os sapatos e as flores?... Habituámo-nos a pensar que na guerra não há lugar para a vida feminina, mas Alexievich mostra-nos, com “A Guerra não Tem Rosto de Mulher”, o quanto estávamos enganados. A história da rapariga que, recuando da frente de combate, entra numa loja para comprar sapatos ou a outra que apanha um raminho de violetas e o ata à baioneta ou a outra, ainda, que dos panos para enrolar os pés faz uma écharpe ornada com croché, são a prova que a vida simples de mulheres simples também fez o dia a dia do conflito. Ali cantaram, enrolaram o cabelo, apaixonaram-se...
Galardoada em 2015 com o Prémio Nobel da Literatura, Svetlana Alexievich faz-nos ver, clara e cruamente, a tragédia que se abateu sobre a população soviética desde Junho de 1941, quando os alemães invadiram o território, até ao dia da Vitória, em 9 de maio de 1945. Mas o livro é, sobretudo, um manifesto em prol das mulheres russas que participaram no conflito e que, muito injustamente, foram ignoradas ou mesmo maltratadas e humilhadas mal a Guerra terminou. Tanquistas, infantes, sapadoras, enfermeiras, franco-atiradoras, instrutoras sanitárias, lavadeiras, barbeiras, padeiras, fotógrafas, partisans, as suas histórias de vida confundem-se, interceptam-se, sobrepõem-se, a voz da própria autora fazendo-se ouvir também em discurso directo, numa polifonia emotiva e punjente. Este é um livro incómodo, dolorido, angustiante, mas absolutamente essencial. Para que a memória jamais se apague.
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