LIVRO: “Debaixo de Algum Céu”,
de Nuno Camarneiro
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Leya, Março de 2013 (5ª edição, Setembro de 2013)
“As primeiras mamas que vi foi atrás da sacristia, enquanto decorria a missa. Este é o meu corpo, tomai e comei, redondas e tão brancas que eu nem sabia para que serviam, olhei-as e se as toquei esqueci-me, eram só lindas as duas, com umas pontitas em bico que desafiavam todas as lógicas que eu conhecia. Este é o meu sangue, tomai e bebei. A rapariga chamava-se Teresa e tinha duas mamas lindas durante a homilia. Às vezes o padre falava de pecados e ficávamos todos cheios de tesão com a ideia disso. Por mim, pecava com todas as meninas da catequese, mesmo as feias com buço, tivessem elas mamas brancas como aquelas.”
Prémio Leya 2012, “Debaixo de Algum Céu” é a crónica de um espaço físico a que chamamos prédio, com gente dentro. Gente que é a sua razão de ser. Que nele se refugia para se libertar dos excessos trilhados na compostura, para poder ser quem é. Como se de um jogo de xadrez se tratasse, Nuno Camarneiro distribui as suas peças pelas várias casas, fazendo de cada lance uma prova de vida onde cabem a alegria e a indiferença, o desprezo e a resignação, o torpor e a euforia. Uma loucura fria e outra ardente. Num andar há silêncios que são como gritos, noutro passeia-se a morte, noutro ainda o bem e o mal, metidos à força numa porção ínfima de espaço, são como uma bomba prestes a explodir. Na cave acumulam-se objectos que contam histórias antigas. Os movimentos são calculados, um passo em falso tem o valor de um xeque-mate.
Análise e síntese da solidão, esse grande mal de que padecem as sociedades actuais, “Debaixo de Algum Céu” é um auspicioso primeiro contacto com a escrita de Nuno Camarneiro. Dele retenho a agilidade e a facilidade com que fragmenta a grande história, fazendo de cada parcela um constructo onde se abrigam ímpetos e vulnerabilidades. Fortemente visual, a narrativa leva-nos por caminhos onde as sombras se adensam e só muito pouco é aquilo que parece realmente ser. A vida é um jogo do faz-de-conta, o instinto toma conta dos gestos mais banais, o quotidiano transforma-se numa luta pela sobrevivência. Debaixo deste céu “um amor manso feito de dias simples e horas marcadas” é uma quimera. Restam as memórias, também elas longínquas, trazidas à tona por um órgão de ventos, de búzios e ervas que restolham, de garrafas que uivam, madeiras que chocam e água que se faz em espuma.
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