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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

LIVRO: "Vamos Então Falar de Árvores"



LIVRO: “Vamos Então Falar de Árvores”,
de António Canteiro
Ed. Edições Húmus e Autor, Novembro de 2020


“Desde há um tempo que moro em pleno aquário de silêncio, enfim, onde posso respirar ausência de tudo, menos de palavras, sei que há horas a mais, recolhimento bastante, recato de cela, de biblioteca, onde as palavras se libertam do cárcere; meia-dúzia de linhas que possa de vez em quando escrever refreiam a vontade de não disparar em louco este cérebro, porque enxergo diante de mim o caminho de dias por andar, mais do que aqueles que suportaria estando aqui parado; franqueio esta simples e única vontade: querer tornar-me escrevedor de mim...”

Conheci António Canteiro através desse genial “A Luz Vem das Pedras”, um livro que “é barro e chão e terra e vento e rocha viva”, como na altura escrevi. Depois disso cruzei-me com a sua escrita em momentos sempre intensos e delicados, embora aquém do fulgor daquele encontro primeiro, dessa “visão encantatória de vida amargurada, de pobreza e solidão”. Até hoje, dia em que pousei o olhar sobre “Vamos Então Falar de Árvores” e o vi escoar-se para dentro de mim linha após linha, palavra após palavra. A mesma força que afaga e esmaga, o mesmo apego às vidas que teimam em perder-se, a mesma poesia feita prosa em doida correria, o mesmo coração a fugir para fora do peito. Mas vamos então falar de árvores...

Situando a estória nos ermos do Barroso, “entre Boticas e Montalegre”, António Canteiro fala-nos de Tadeu, “zé ninguém, pobre, de saquitel no ombro, mas, de bordão firme no pulso”, daqueles que “d’antes quebrar que torcer”. A miséria por moldura, o seu retrato de vida é o mesmo de tantos outros Tadeus, homens que nunca foram meninos, “tremendo na terra fria os pés gretados”, “roendo o trancanaz do pão sem conduto”, como único contento roubar os ovos dos ninhos, comer os mais passadinhos da figueira pingo-de-mel, escutar o foguetório pela vinda dos emigrantes, dar um mergulho na albufeira da Barragem do Alto Rabagão, ir a Vinhais à Feira do Fumeiro ou saltar o Entrudo a mailos caretos. Isso e um passeio de mãos dadas com Olga, a prima Olga.

Contemplando dois momentos distintos mas complementares entre si, a narrativa dá prova do engenho de António Canteiro em cuidar das palavras como pedras preciosas que são. As suas frases – “a corda que se ergue na barca e incita a quilha na tesoura das águas” – são poemas visuais. Na terra lavrada vemos “as arvéolas a andarem de cá para lá, saltitantes, a ciscarem seus bichos” e com a tempestade trememos, “as árvores, abrigos e outros ventos a seguirem com força, a caírem, a ficarem destelhadas as casas”. E depois há toda uma riqueza de vocabulário que nos faz bem, seja numa tardada de gente ou no dar à tramela, nas norças dos dedos ou no ir às sortes, no de-comer, nos lomedros e pegamasso e engaranhado e zamborrada, nos rinzes. No antes e no agoramente.

Termino referindo o quanto este livro vale por si só, mas também pelo que representa no conjunto da obra do autor, no que tem de coerência, apuro e lucidez. Se Carlos de Oliveira é uma referência importante em “Parede de Adobo” ou se António Nobre tem honras de personagem em “Logo À Tarde Vai Estar Frio”, se Mia Couto se passeia pelas páginas de “Ao Redor dos Muros” ou se um poema de Pedro Tamen oferece o título a “A Luz Vem das Pedras”, também aqui há João Luís Barreto Guimarães e a sua poesia para nosso deleite. Os ambientes concentracionários – uma torre, uma prisão, um sanatório, as paredes de um quarto – voltam a ser palcos da acção, neles se espelhando o recolhimento do escritor no seu “aquário de silêncio”. Acrescentaria a estranheza das palavras a pedir glossário ou uma recorrente folha de papel de trinta e cinco linhas, para concluir o quanto de profuso e criativo há neste livro, súmula e parcela de uma obra suficientemente vasta e rica e que precisa de ser desvendada com urgência.

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