LIVRO: “Jesus Cristo Bebia Cerveja”,
de Afonso Cruz
Ed. Companhia das Letras, Abril de 2012 (8ª edição, Maio de 2019)
“Os meus avós, os meus pais, a minha mulher, eu e os meus filhos comemos debaixo de um plátano gigante, brincámos debaixo de um plátano gigante, rimos debaixo de um plátano gigante... Se nos cair um tronco em cima, se nos matar a todos, é melhor do que a puta de um cancro. Foram gerações inteiras a usufruir da felicidade de estar debaixo de uma árvore. Sabes o que isso quer dizer? Que vivíamos, que gostávamos do que fazíamos, que sangrávamos dos tomates e das costas e dos ossos, que chorávamos e ríamos sem precisarmos de uma telenovela ou de um comediante na televisão. Era assim que vivíamos. Debaixo das árvores.”
Partindo de uma ideia que prima pela simplicidade – os esforços de uma rapariga muito jovem que, dedicadamente, tudo faz para que a avó possa viver o sonho de visitar a Terra Santa antes de morrer –, Afonso Cruz prova o seu génio na forma como desenvolve a acção do romance, pontuando-o de momentos delicados e de uma enorme ternura. Na forma como as suas personagens se entrelaçam cabem todos os dogmas de um mundo fantasioso, a vida como uma peça levada ao palco por um encenador com tanto de compreensivo como de caprichoso. Num avião transformado em bar de strip como nas arcadas de uma baleia que se abrigam num quarto de dormir, o autor faz da vida uma sequência de acasos, lembrando que entre o forro de uma cadeira imaculadamente branco e uma sujidade como uma pincelada arrastada, expressionista, vai o simples sentar de um corpo.
É difícil não encontrarmos na escrita de Afonso Cruz algo que nos toque, nos seduza, de tal forma o seu contar é engenhoso, quase delirante, repleto de momentos bem-humorados, as piscadelas de olho ao real a porem a nu as partidas que o destino gosta de pregar, as suas ironias supremas. Com a mesma facilidade, faz-nos escutar o arrazoado boçal de um cantoneiro, a lengalenga estafada de um padre ou os pensamentos de um teólogo do Renascimento. Com igual nexo, nos diz que a vida só vale a pena quando se morre por amor, dois seres entranhados um no outro, como uma faca espetada no coração, ou que o vinho na Última Ceia é um erro histórico: Jesus Cristo bebia cerveja! Pode não ser o melhor livro de Afonso Cruz mas é, certamente, um belo momento de leitura.
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