LIVRO: “As Três Vidas”,
de João Tordo
Ed. Companhia das Letras, Maio de 2018
“O cabelo caía-me sobre o rosto em madeixas húmidas, a água escorria-me do queixo. Tinha olheiras profundamente marcadas e, na perna esquerda das calças, um enorme rasgão que não me recordava de ter feito. Parecia um vagabundo, e fiquei quase perplexo com a figura bizarra que me retribuía o olhar. Ali estava a terceira vida, pensei, recordando o nome da livraria; ali estava ela perante os meus olhos, em toda a sua miséria, directamente a seguir à primeira, passando à frente de uma irrevogável existência já perdida – a minha existência com Camila. Uma segunda vida impossível, a mais valiosa, demasiado valiosa para ser deste mundo.”
Praticamente em início de carreira – antes, João Tordo tinha publicado apenas “O Livro dos Homens Sem Luz” (Novembro, 2004) e “Hotel Memória” (Fevereiro, 2007) -, “As Três Vidas” constituiu um importante momento de consagração na carreira do escritor ao arrebatar o Prémio Literário José Saramago 2009. Aquilo que se intuía no seu romance anterior e que ficaria sobejamente vincado nos recentes “A Mulher Que Correu Atrás do Vento” e “A Noite em Que o Verão Acabou”, ambos de 2019, confirma João Tordo como um excelente contador de histórias, com um apurado domínio dos tempos da narrativa e, sobretudo, uma capacidade enorme de manter o leitor atento e interessado, fechando umas portas e abrindo outras no momento certo, guiando-o em sobressalto por corredores húmidos de luz mortiça, entre sombras esquivas, o tão desejado clarão ao fundo do túnel tardando em surgir.
O “mundo desconhecido, que pouca gente suspeitaria existir, e no qual muitos se recusariam a acreditar”, é uma artimanha que se repete ao longo do livro, destinado a tornar irreal uma história com contornos de verdade. Escritor versátil e de uma imaginação prodigiosa, João Tordo mistura figuras e factos reais – autodidacta do funambolismo, Philippe Petit cruzou realmente as Torres Gémeas na manhã de 6 de Agosto de 1974 -, com as suas personagens ficcionadas, oferecendo-nos uma história plena de questões que, em larga medida, ficarão por resolver. Como num bom filme de Howard Hawks ou John Huston – e é com propriedade que falo em cinema, de tão visual que é a escrita de João Tordo -, o final do livro tem um tom moralista que muito o engrandece. Tal como este livro, “todos os mistérios, os pequenos e os grandes, os resolvidos e os por resolver, os da vida e os da morte”, chegarão ao fim quando chegarem.
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