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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

LIVRO: "Azulejos Pretos"



LIVRO: “Azulejos Pretos”,
de Pedro Bidarra
Ed. Guerra & Paz Editores, Novembro de 2020


“A porta é preta, a retrete é preta, o tampo é preto, o papel higiénico é preto. A luz vinda dos focos embutidos no tecto reflecte-se com suavidade no azulejo preto que forra as paredes. O mosaico que cobre o chão também é preto. Foi tudo muito bem conseguido. O preto nunca cansa.”

Tem início no Verão quente de 1975 e é uma festa que está para durar. No salão, ricamente decorado, o elegante e bem apelidado anfitrião vai cumprimentando os presentes, fazendo da conversa de circunstância a circunstância da sua presença. Sob as multicoloridas luzes da bola de espelhos cultivam-se frivolidades e pavoneiam-se vaidades. Por entre o gesto fingido assomam invejas em sorrisos postiços e a má-língua toma conta dos comentários. Muita afectação, muita presunção e alguma água benta, até. Uma cambada de otários, pensará o narrador deste livro, alguém menos interessado em salões e mais tentado por casas de banho, bastidores silenciosos abertos à verdade, espécie de purgatórios onde as máscaras desaparecem e se expõem virtudes. Para o bem e para o mal.

Provocador, irreverente, cáustico, irónico, bem-humorado e extraordinariamente inteligente, “Azulejos Pretos” é o retrato eloquente de uma fauna onde pululam artistas, banqueiros, jornalistas, mediadores imobiliários, grandes empresários, deputados, juristas, profissionais do sexo e, até, padres. Desenraizado deste peculiar meio, o narrador funciona como alguém que vê o mundo caminhar ao seu encontro sem sair do lugar, fazendo da casa de banho a nave possível, uma extraordinária máquina de descoberta e alargamento de horizontes. Levado a reflectir sobre o(s) mundo(s) em geral e, em particular, sobre o seu lugar neste(s) mundo(s), partilha com o leitor as convenções de um certo meio, ao mesmo tempo que pisca o olho a uma banda sonora onde imperam os imortais Talking Heads e onde se descobrem, entre outros, Brian Ferry, Sylvester, The Cure, Joy Division, Yes ou mesmo Bach.

Com brilhantismo, o autor faz da casa de banho o lugar democrático e diverso por excelência. O mosaico antigo e desirmanado é um modelo de diversidade, a manta remendada é uma metáfora do comodismo, as mamas são um ícone do firmamento digital, a estátua grega é um salvo conduto para o delicado sabor a ambrósia, a cabeçada no nariz é um argumento honesto a pontuar o discurso em momentos em que o verbo não chega e a lambidela de cu é o garante da glória eterna do poeta. O final do livro é sublime, levando-nos de volta ao princípio, aos nossos maiores sonhos ou aos nossos mais terríveis pesadelos. Goste-se ou não, “Azulejos Pretos” é daqueles livros que não deixa ninguém indiferente. Eu gostei. Muito.

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