Páginas

domingo, 28 de fevereiro de 2021

LIVRO: "Se com Pétalas ou Ossos"



LIVRO: “Se com Pétalas ou Ossos”,
de João Reis
Ed. Minotauro, Fevereiro de 2021


“Como não consegui adormecer de imediato nem em poucos minutos, decidi ler um pouco do livro que tinha na mesa de cabeceira: um romance, traduzido para inglês, de uma escritora sul-coreana. Comecei a ler o romance e não senti sono. Pousei o livro na cama. Pus-me a pensar. Sim, por vezes, acontecia... pensava!... inquietavam-me as possibilidades levantadas pelo meu novo livro, pois ainda havia tempo de alterar a narrativa. Oh, os dilemas da escrita, o tormento, seria melhor abandonar tudo, não escrever mais nada, mas os compromissos, a residência, as contas por pagar, uma namorada pálida, porventura necessitada de tratamento médico... e a pressão... alguma pressão...”

“Se com Pétalas ou Ossos” leva-nos até Seul, ao encontro de Rodrigo Oliveira e da residência para escritores onde trabalha no seu mais recente livro. É início de Maio e faz muito calor na Coreia do Sul, agravado por níveis de poluição altamente tóxicos. O reconhecimento da obra prévia, ainda que por meia dúzia de pessoas apenas, pesa-lhe nos ombros. A mesa onde escreve não tem a orientação desejada e o escritor tem dificuldade em dormir, em gerir um espaço que não é o seu, em ganhar disposição e tempo para escrever. A interacção com a sua supervisora, com os escritores com quem partilha a residência, com o editor em Portugal e com a namorada Beatriz, desgasta-o. Para cúmulo, o desaparecimento de um dos residentes, uma escritora de nacionalidade espanhola, está a ser investigado pela polícia.

Contado na primeira pessoa, “Se com Pétalas ou Ossos” é uma auto-ficção que faz do(s) meio(s) o seu próprio fim. Ao partilhar com o leitor os dilemas deste narrador sob pressão e obcecado por uma história para a qual não encontra inspiração, o autor convida-nos, com toda a subtileza, a visitarmos os meandros da criação literária e a percebermos como qualquer coisa - um saco de resíduos biológicos, o milagre da água canalizada, a coleira de um cão - pode ser nada e tudo ao mesmo tempo. Ironizando com o meio literário e com o estatuto que o escritor para si reclama, os seus dramas, a sua volubilidade, os seus caprichos, João Reis subverte regras e princípios de normalização da escrita, dizendo aquilo que não é suposto ser dito. Em lugar do habitual “esconde-esconde”, este é um jogo do “mostra-mostra”, realidade e ficção brincando no mesmo plano ao serviço do projecto de escrever um livro com 200 páginas, “uma espessura mais concordante com a qualidade técnica” deste narrador.

Falar da escrita de João Reis é falar de estilo. De um estilo único na abordagem a temas que, inevitavelmente, estão ligados ao ofício do escritor (ou do tradutor), à luta pela construção de uma obra. Lemos um parágrafo avulso e sabemos que aquilo só pode ser João Reis, da mesma forma que dois acordes encadeados nos levam a pronunciar Chopin e não Liszt ou Debussy. A obra cresce e percebemos que obedece a um padrão, se olhada no seu todo. Sugere Henri James e o enigmático “O Desenho do Tapete”, nela se evidenciando a densidade dos conflitos vividos pelas personagens, a aguda descrição das condições socioculturais e uma constante reflexão sobre a arte, a condição do artista e o próprio acto de escrever. Neste “Se com Pétalas ou Ossos” há mistério, drama e sexo, como há crónica de costumes e literatura de viagem. Mas isso são apenas meios para o fim único que é o livro. Este livro. Com 200 páginas.

Sem comentários:

Enviar um comentário