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sábado, 9 de janeiro de 2021

LIVRO: "Insubmissos"



LIVRO: “Insubmissos”,
de Richard Zimler
Tradução | Daniela Carvalhal Garcia
Ed. Porto Editora, Outubro de 2020


“Já vi pessoas atingirem o limite, e tu não estás sequer perto disso. Ainda não vomitas para cima dos livros que lês. Não tens a cara roxa. Nem os olhos salientes como os de um inseto. As roupas ainda te servem, porra! Estás a ouvir? Não estás nem perto! Eu aviso-te quando te aproximares! Vais saber, foda-se, porque nem vais conseguir lembrar-te quando ainda tinhas saúde e conseguias berrar como um ser humano! Vais saber que estás perto quando os teus ossos ficarem tão salientes que terás medo que um deles te perfure quando te sentares. Aí, sim, porra, vais estar perto! E aí, sim, terás atingido o teu limite.”

Assistirá sempre ao leitor o direito de acreditar naquilo que quiser, mas ao iniciar “Insubmissos” com a revelação de um conjunto de factos e experiências pessoais, sobretudo as relacionados com a morte do irmão e sobre a forma como a pandemia da sida lançou uma negra sombra sobre a vida na área da Baía de São Francisco nos anos 80 do século passado, Richard Zimler quis abrir o coração para que melhor fosse entendido e, quem sabe, julgado. Daí que optasse por transformar um posfácio em prefácio, quiçá demasiado revelador, onde a palavra “verdade” se ergue acima de qualquer outra. Por vontade própria, Zimler quis que o leitor fosse o primeiro a saber ao que ía, se situasse no drama que foi a descoberta de uma doença para a qual não havia cura, sentisse a dor e o medo de quem sabe que vai morrer, para então se entregar à leitura sem reservas ou preconceitos, antes de forma cúmplice, solidária.

Vertido numa longa carta, “Insubmissos” não é um livro fácil. A questão da homossexualidade – aqui abordada de forma crua – e a carga emocional que envolve a narrativa, impedem o leitor de se sentir confortável e encontrar sérias dificuldades na distinção que faz daquilo que é real do que é ficção. A personagem do Professor, por exemplo, é indissociável da figura do próprio Zimler. É ele que vemos a olhar-se ao espelho, a entregar-se a um amante, a reagir às ofensas ou a enfrascar-se de Valium. Talvez o autor não tivesse querido “impor-se” de forma tão clara, mas a impressão que passa é essa. E ainda bem. Seguimo-lo – e, com ele, seguimos também Miguel e António, pai e filho – e aprendemos com eles a mergulhar no nosso próprio eu, ao encontro de valores tão caros como a humildade, a coragem, a franqueza e a amizade.

Não deixa de ser significativo o facto de este livro ter esperado mais de vinte anos para ser lançado em Portugal. As razões para este “atraso” estão igualmente explicadas no prefácio e prendem-se com a sociedade fechada e tacanha que é a nossa – se nos lembrarmos que o inenarrável Sousa Lara, poucos anos antes, vetara a candidatura de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago, a um prémio literário europeu, por considerar que o livro ofendia a moral cristã, penso que está tudo dito. Por outro lado, é profundamente irónico que o livro seja lançado em plena pandemia de Covid-19, permitindo fazer a ponte com a pandemia de VIH e dizendo-nos, claramente, que as coisas não acontecem apenas aos outros. Pela sua lucidez, inteligência e verdade, “Insubmissos” merece uma leitura atenta e empenhada. Ele tem, certamente, algo de muito importante para dizer a cada um de nós.

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