Páginas

domingo, 6 de dezembro de 2020

LIVRO: "O Beco da Liberdade"



LIVRO: “O Beco da Liberdade”,
de Álvaro Laborinho Lúcio
Edição | Lúcia Pinho e Melo
Ed. Quetzal Editores, Setembro de 2019


“Maria Cacilda levantou-se para esperar o vento. Sabia que vinha lá e que trazia desgraça. Deixou a roupa que pespontava espalhada pelo chão e chegou-se à porta. Ficou de pé. Hirta. E o vento veio. Em rajada. Fustigou-lhe o corpo, os olhos, os cabelos. Trazido pelo vento, veio o cunhado. Dobrou a esquina e estacou a olhá-la ainda ao longe. Aproximou-se. Parou à frente dela.
– Bom dia, cunhada.
– Quem o matou?”

Três anos depois do inaugural “O Homem Que Escrevia Azulejos”, Álvaro Laborinho Lúcio regressa ao romance com este “O Beco da Liberdade”. Mais do que um crime, nele se narram os seus contornos, se revelam as figuras próximas da vítima, se dão a ver jornalistas e investigadores, notários e juízes. Tudo isto numa pequena comarca do interior Norte onde todos se conhecem, os contos e ditos são uma forma de estar e há sempre uma explicação para aquilo que acontece. Entre uma certa forma de ser português e os tiques do Estado Novo, é todo um microcosmos social que vamos desvendando à medida que avançamos na leitura, ao mesmo tempo que percebemos que as coisas não mudaram assim tanto neste quase meio século que levamos de liberdade.

Quem lê os dois romances de Álvaro Laborinho Lúcio não pode deixar de notar a enorme evolução no tratamento que o autor dá às personagens, aproximando-as do leitor, tornando-as mais humanas, clamando a nossa compreensão e, mais do que isso, a nossa conivência. É, pois, um livro que nos suga para o seu interior, mobilizando-nos pela beleza dos seus quadros realistas e pela força de uma escrita que combina, na dose certa, a inteligência e a elegância. Daí que a leitura se faça no espaço de um fôlego, tamanho o interesse da história, tão grande a dimensão íntegra de figuras como a do subinspector Gervásio Ventura, do jornalista Floriano Antunes ou do juiz Guilherme Augusto Marreiro Lessa.

Mas “O Beco da Liberdade” é também, ou sobretudo, uma reflexão muito pessoal sobre a própria condição humana. É na figura do juiz – na qual não podemos deixar de ver o próprio autor –, que aos poucos abandonamos o beco da liberdade em que toda a vida nos movemos e nos embrenhamos no caos, “em busca de nós mesmos, desafiando aí, nesses domínios do absoluto, os poderes da liberdade, da consciência e talvez até de Deus”. Sem abandonar o tom do romance, o autor reclama para si as derradeiras páginas, através das quais mergulha na própria vaidade, nas traições que a realidade encerra, no risco do livre arbítrio e na sua causa maior, a ignorância. Será menos o romancista e mais o professor de Direito a falar-nos, propondo-nos uma exemplar lição, intensa, eloquente, inspiradora.

Sem comentários:

Enviar um comentário