LIVRO: “O Beco da Liberdade”,
de Álvaro Laborinho Lúcio
Edição | Lúcia Pinho e Melo
Ed. Quetzal Editores, Setembro de 2019
“Maria Cacilda levantou-se para esperar o vento. Sabia que vinha lá e que trazia desgraça. Deixou a roupa que pespontava espalhada pelo chão e chegou-se à porta. Ficou de pé. Hirta. E o vento veio. Em rajada. Fustigou-lhe o corpo, os olhos, os cabelos. Trazido pelo vento, veio o cunhado. Dobrou a esquina e estacou a olhá-la ainda ao longe. Aproximou-se. Parou à frente dela.
– Bom dia, cunhada.
– Quem o matou?”
Quem lê os dois romances de Álvaro Laborinho Lúcio não pode deixar de notar a enorme evolução no tratamento que o autor dá às personagens, aproximando-as do leitor, tornando-as mais humanas, clamando a nossa compreensão e, mais do que isso, a nossa conivência. É, pois, um livro que nos suga para o seu interior, mobilizando-nos pela beleza dos seus quadros realistas e pela força de uma escrita que combina, na dose certa, a inteligência e a elegância. Daí que a leitura se faça no espaço de um fôlego, tamanho o interesse da história, tão grande a dimensão íntegra de figuras como a do subinspector Gervásio Ventura, do jornalista Floriano Antunes ou do juiz Guilherme Augusto Marreiro Lessa.
Mas “O Beco da Liberdade” é também, ou sobretudo, uma reflexão muito pessoal sobre a própria condição humana. É na figura do juiz – na qual não podemos deixar de ver o próprio autor –, que aos poucos abandonamos o beco da liberdade em que toda a vida nos movemos e nos embrenhamos no caos, “em busca de nós mesmos, desafiando aí, nesses domínios do absoluto, os poderes da liberdade, da consciência e talvez até de Deus”. Sem abandonar o tom do romance, o autor reclama para si as derradeiras páginas, através das quais mergulha na própria vaidade, nas traições que a realidade encerra, no risco do livre arbítrio e na sua causa maior, a ignorância. Será menos o romancista e mais o professor de Direito a falar-nos, propondo-nos uma exemplar lição, intensa, eloquente, inspiradora.
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