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terça-feira, 3 de novembro de 2020

LIVRO: "Apneia"



LIVRO: “Apneia”,
de Tânia Ganho
Editor | Francisco Camacho
Ed. Casa das Letras, Julho de 2020


“O que a chocava, mais do que a possibilidade da perfídia de Alessandro, era a sua própria capacidade de imaginar essa perfídia. O instinto de sobrevivência obrigara-a a identificar e antecipar os esquemas mentais perversos de Alessandro, para se proteger e defender deles, e afligia-a a dúvida se essa sua capacidade significaria que era igual a ele. Se seriam um monstro com duas cabeças, enredando o filho nas suas tramas de ódio e subjugação, até se tornarem um mítico cérbero.”

“Triângulo tóxico”. A expressão não é minha, vem no livro. Mas é, de facto, de um triângulo tóxico que falamos quando falamos de “Apneia”, a história de um casal que disputa a guarda do filho, num moroso processo de divórcio litigioso do qual todos sairão a perder. De forma detalhada, Tânia Ganho vai revelando os contornos de uma história que se adensa e ensombra página após página, acabando por mergulhar nas motivações de um dos progenitores para nos dar a perceber que o sistema tem tanto de burocrático como de falível, o dedo apontado a psicólogos, advogados, investigadores e magistrados. O dedo apontado, de um modo mais vasto, a todos quantos “lavam as mãos, relativizam, mentem ou se deixam levar por pré-juízos”.

Esta breve nota serve para dizer que reconheço algum mérito no romance de Tânia Ganho. Ele funcionará, sobretudo, como alerta para as falhas do sistema no seu todo, a começar na família e a terminar na justiça. Isto não significa, porém, que tivesse gostado do livro. Não gostei. Neste pai não se vislumbra nada de aceitável, da mesma forma que a mãe é boazinha até dizer basta. Reduzidas à condição de estereótipos, as duas personagens principais do livro tornam-se totalmente previsíveis. Com a autora enredada na teia que ela própria criou, a acção vê-se resumida a uma insuportável sucessão de clichés que se repetem de forma exaustiva. A narrativa estende-se, tendenciosa, não havendo como escapar ao sentimento de manipulação. Aquilo que se pretendia um tempo de prazer torna-se em desconforto. O divórcio entre autor e leitor é uma questão de tempo.

Ainda o livro vai no seu início e já não se atura tanta passagem em Monsanto, os vidros do carro sempre abertos, as lágrimas misturadas com a chuva que fustiga o rosto da mulher. Olho para a lombada do livro e nem quero acreditar que me espera mais do mesmo na infinidade de páginas que se abrem à minha frente. O filho continuará um sininho quando vai passar o fim de semana com o pai e regressará ao lar materno transformado em demónio furibundo. A mãe não levantará nunca a mão ao filho porque é, de facto, uma riqueza de mãe. Já o homem é mesmo mau e sê-lo-á cada vez mais. Sabemos que tanta maldade deverá ter uma justificação e Tânia Ganho não se faz rogada. A corda esticada ao máximo resulta num anti-climax. O desfecho desta história é inenarrável. Pelo menos, “Apneia” ensinou-me que talvez deva começar a repensar esta minha teimosia em não pôr de parte um livro, por mais enfadonho que ele possa ser. Nunca o fiz e também não foi desta. Mas esteve quase.

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