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sábado, 29 de fevereiro de 2020

CERTAME LITERÁRIO: Correntes d'Escritas 2020


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CERTAME LITERÁRIO: Correntes d’Escritas 2020 
Cine-Teatro Garret e outros locais, Póvoa de Varzim 
15 Fev > 23 Fev 2020 


“Be not afeard; the isle is full of noises,
Sounds, and sweet airs, that give delight and hurt not.
Sometimes a thousand twangling instruments
Will hum about mine ears; and sometimes voices,
That, if I then had waked after long sleep,
Will make me sleep again: and then, in dreaming,
The clouds methought would open, and show riches
Ready to drop upon me; that, when I waked,
I cried to dream again.”
William Shakespeare, “A Tempestade”

Entre os dias 15 e 23 de Fevereiro, a Póvoa de Varzim voltou a acolher as “Correntes d’Escritas”, o mais antigo encontro de escritores de Portugal. O pontapé de saída foi dado pelas “Vozes transeuntes nas ruas da poesia”, espalhando o perfume das Correntes pelo Mercado Municipal e pelas artérias da cidade. Seguiu-se todo um vasto e riquíssimo programa que incluiu Correntes à conversa, lançamentos de livros, música, cinema, exposições, um curso de Formação para professores, sessões para alunos e ainda uma Feira do Livro que voltou a estar particularmente concorrida. Mas o epicentro do certame foi mesmo o Cine-Teatro Garret, ao qual um público atento e interessado afluiu em massa para escutar as intervenções de quase uma centena de escritores e outros agentes ligados à palavra e às letras.

A minha presença nas Correntes deste ano resumiu-se à tarde do dia 20, a qual ficou marcada pela possibilidade de trocar umas breves palavras com o escritor chileno Luís Sepúlveda, de quem sou admirador confesso há três décadas, e de colher dedicatórias simpáticas em alguns dos seus livros. Um interessante colóquio sobre literatura catalã, duas exposições, uma apresentação de livros, a aquisição de mais quatro obras para a minha biblioteca e ainda os autógrafos de Isabel Rio Novo, David Machado, José Gardeazabal e Paulo M. Morais nos seus mais recentes trabalhos ficam nas memórias de uma tarde muito bem passada, coroada por essa calorosa saudação ao enorme poeta angolano que é Manuel Rui.

Com o tradutor e crítico alemão Michael Kegler a moderar a primeira mesa da tarde, a discussão centrou-se em torno do tema “Era Uma Vez a Liberdade”. Foi o tempo de escutar José Gardeazabal referir-se à palavra como “o grande milagre da democracia pluralista”, porque é ela “que nos faz acreditar e nos faz duvidar”, José Luís Peixoto dizer que “um dos valores importantes da literatura é a liberdade” e Marta Orriols afirmar que “a literatura deve convocar mais perguntas e menos respostas”. Mas foi sobretudo o tempo de beber as palavras clarividentes de Luís Sepúlveda, centrando-se na palavra liberdade para nos dizer que esta “é cada vez mais sinónimo de melancolia”. Para o escritor chileno, “quando pensamos hoje em liberdade, percebemos que já não sabemos como era, se loira ou morena, magra ou gorda, alta ou baixa... e caímos numa recordação melancólica. Por isso importa que afastemos aquilo que nos impede de a vermos nítida no seu ninho, nos aproximemos dela e a encontremos inteira, limpa, bela e possamos então dizer-lhe amo-te, quero-te, fica comigo!

A última mesa do dia foi moderada pelo escritor e editor moçambicano Celso Muianga e subordinada ao tema “Tenho medo da poesia”. A este propósito, a cantora e compositora guineense Karyna Gomes associou a palavra medo à coragem e perseverança e lembrou o quanto a luta de Amílcar Cabral e do povo da Guiné-Bissau e Cabo Verde se funde na poesia. Numa intervenção bem humorada, Miguel Araújo confessou que “a poesia mete-me medo por todos os lados” e Isabel Rio Novo invocou a palavra “respeito” para descrever “a atitude da mulher que escreve romances mas nunca poemas”. Ivo Machado evocou Jorge Enrique Adun para dizer que “não há memória de poetas mudos”, dando valor à voz e acrescentando ser a poesia que deve ter medo do poeta, “quando procuro dominá-la, subjugá-la ao meu fulgor, à minha língua com travo de enxofre, ao meu desejo estético”.

Ana Luísa Amaral protagonizou o momento alto da tarde, começando por fazer escutar as palavras de Caliban, o monstro de “A Tempestade”, de Shakespeare, ditas magnificamente por Joseph Fiennes. A poeta serviu-se desta passagem para ilustrar “o medo da palavra no que ela tem de poderoso, ao criar mundos, e de violento ao fazer crer em mundos e ao dominar”. “E quem tem medo da poesia?” pergunta Ana Luísa Amaral, para logo responder: “São aqueles que acreditam no tribalismo, acima de tudo, e não nessa abertura a tudo o que a poesia propõe no seu mais profundo âmago. Os que à multiplicidade contrapõem o modelo único, os que à pluralidade, onde somos todos outros e nós, nós e outros ao mesmo tempo, defendem o ‘nós’ de um lado e o ‘eles’ do outro, sendo que o ‘eles’ é sempre menor, sempre desprezível e sempre apresentado como ameaçador. Quem tem medo da poesia são os das ditaduras, que se impuseram primeiro pela força dos músculos, depois pelo que herdaram dos mais velhos, a astúcia, o engano, a impiedade; são esses os que amealham e nada transmitem nem geram. (...) Sim, os mercadores do nada têm medo da poesia, porque a poesia, ao não falar uma língua só, é sempre coisa instável e fugidia, e move-se com o arrepio das certezas certas.

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