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terça-feira, 14 de janeiro de 2020

LIVRO: "Autobiografia"


LIVRO: “Autobiografia”,
de José Luís Peixoto
Ed. Quetzal Editores, Julho de 2019


“Um dia escrevi que tudo é autobiografia, que a vida de cada um de nós a estamos contando em tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objecto do chão. Queria eu dizer então que, vivendo rodeados de sinais, nós próprios somos um sistema de sinais. Seja como for, que os leitores se tranquilizem: este Narciso que hoje se comtempla na água desfará, amanhã, com sua própria mão, a imagem que o contempla.”
José Saramago, in “Cadernos de Lanzarote” (1997)

Dar a José Saramago a primazia de personagem central de “Autobiografia” é colocar o romance, ainda que com as devidas ressalvas, no terreno da realidade. Por maior que seja o esforço em centrar a leitura no domínio da ficção, é impossível ao leitor abstrair-se da figura do Prémio Nobel a cada página virada, quer por aquilo que dele se sabe enquanto figura pública e autor de algumas das mais importantes obras da literatura portuguesa do século XX, quer pela descrição de um conjunto de factos que nos devolvem, por inteiro, a pessoa e o seu tempo. José Luís Peixoto tão pouco se furta ao desafio de trilhar caprichosos caminhos ao longo dessa ténue linha de fronteira entre realidade e ficção, convocando histórias e memórias que o ligam a Saramago – do primeiro aperto de mão ao assentimento final, olhos nos olhos – e que remetem para o início da sua carreira de escritor quando, em 2001, foi distinguido com o Prémio Saramago.

A acção decorre em 1997-1998, ao encontro de José, um jovem escritor “encalhado” no seu segundo romance, que em vários momentos se cruza com José Saramago, a pretexto de colher informações para uma biografia que lhe foi encomendada. Ao leitor é proposto visitar a relação entre estas duas personagens e, através dela, conhecer alguns apontamentos das suas vidas, ao mesmo tempo tão distantes e tão próximas, a ponto de se confundirem. Neste processo de descoberta, são reveladas as personagens que fazem parte da vida deste jovem escritor José, todas elas ligadas de certa forma ao próprio José Saramago, quanto mais não seja pelo nome – do senhorio Bartolomeu de Gusmão, ao livreiro Fritz ou à empregada de supermercado Lídia, nomes que remetem para “Memorial do Convento”, “A Viagem do Elefante” e “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, respectivamente -, uma curiosa e divertida intertextualidade a insinuar-se ante o leitor.

“Autobiografia” apresenta-se como um romance, assume-se como uma biografia (ou melhor dizendo, “texto ficcional de cariz biográfico”) mas a sua pedra de toque está no ensaio, na forma como o autor brinca com as palavras, expondo a imensidão de recursos de género e de estilo que habitam a Literatura e provando que não há limites para a escrita quando a imaginação é ilimitada. É absolutamente notável a forma como José Luís Peixoto desenvolve um livro dentro de um livro dentro de um livro, fundindo-se com as suas personagens, contando-se a si próprio através delas e contando cada uma delas através de si próprio. Perante a cegueira das páginas em branco no momento de abraçar a escrita, é comovente a lucidez do escritor, a forma como se deixa levar – qual jangada – por todos os nomes, a fantasia e o talento a carregarem de imprevisibilidade cada lance, a elegância e inteligência a fundirem dois Josés num só. Um livro extraordinário.

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