LIVRO: “Autobiografia”,
de José Luís Peixoto
Ed. Quetzal Editores, Julho de 2019
“Um dia escrevi que tudo é
autobiografia, que a vida de cada um de nós a estamos contando em
tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na maneira como nos
sentamos, como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos
um objecto do chão. Queria eu dizer então que, vivendo rodeados de
sinais, nós próprios somos um sistema de sinais. Seja como for, que
os leitores se tranquilizem: este Narciso que hoje se comtempla na
água desfará, amanhã, com sua própria mão, a imagem que o
contempla.”
José Saramago, in “Cadernos de
Lanzarote” (1997)
Dar a José Saramago a primazia de
personagem central de “Autobiografia” é colocar o romance, ainda
que com as devidas ressalvas, no terreno da realidade. Por maior que
seja o esforço em centrar a leitura no domínio da ficção, é
impossível ao leitor abstrair-se da figura do Prémio Nobel a cada
página virada, quer por aquilo que dele se sabe enquanto figura
pública e autor de algumas das mais importantes obras da literatura
portuguesa do século XX, quer pela descrição de um conjunto de
factos que nos devolvem, por inteiro, a pessoa e o seu tempo. José
Luís Peixoto tão pouco se furta ao desafio de trilhar caprichosos caminhos ao longo dessa
ténue linha de fronteira entre realidade e ficção, convocando
histórias e memórias que o ligam a Saramago – do primeiro aperto
de mão ao assentimento final, olhos nos olhos – e que remetem para
o início da sua carreira de escritor quando, em 2001, foi
distinguido com o Prémio Saramago.
A acção decorre em 1997-1998, ao
encontro de José, um jovem escritor “encalhado” no seu segundo
romance, que em vários momentos se cruza com José Saramago, a
pretexto de colher informações para uma biografia que lhe foi
encomendada. Ao leitor é proposto visitar a relação entre estas
duas personagens e, através dela, conhecer alguns apontamentos das
suas vidas, ao mesmo tempo tão distantes e tão próximas, a ponto
de se confundirem. Neste processo de descoberta, são reveladas as personagens que fazem parte da vida deste jovem
escritor José, todas elas ligadas de certa forma ao próprio José
Saramago, quanto mais não seja pelo nome – do senhorio
Bartolomeu de Gusmão, ao livreiro Fritz ou à empregada de
supermercado Lídia, nomes que remetem para “Memorial do Convento”,
“A Viagem do Elefante” e “O Ano da Morte de Ricardo Reis”,
respectivamente -, uma curiosa e divertida intertextualidade a insinuar-se ante o leitor.
“Autobiografia” apresenta-se como
um romance, assume-se como uma biografia (ou melhor dizendo, “texto
ficcional de cariz biográfico”) mas a sua pedra de toque está no
ensaio, na forma como o autor brinca com as palavras, expondo a
imensidão de recursos de género e de estilo que habitam a
Literatura e provando que não há limites para a escrita quando a
imaginação é ilimitada. É absolutamente notável a forma como
José Luís Peixoto desenvolve um livro dentro de um livro dentro de
um livro, fundindo-se com as suas personagens, contando-se a si
próprio através delas e contando cada uma delas através de si próprio.
Perante a cegueira das páginas em branco no momento de abraçar a
escrita, é comovente a lucidez do escritor, a forma como se deixa
levar – qual jangada – por todos os nomes, a fantasia e o talento
a carregarem de imprevisibilidade cada lance, a elegância e
inteligência a fundirem dois Josés num só. Um livro
extraordinário.
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