LIVRO: “Também os Brancos Sabem
Dançar”,
de Kalaf Epalanga
Ed. Editorial Caminho, Novembro de
2017
“[O kuduro] nasceu da vontade da
juventude angolana de expressar no movimento do corpo toda a energia
recalcada, todo o luto, toda a alegria negada a jovens que querem ser
como os outros, livres de existir para além da esperança média de
vida, para lá do serviço militar obrigatório, para lá da malária
e tantas outras privações de que muitos não têm sequer
consciência. Não conseguem verbalizar, apenas sentem, e por isso
dançam como se disso dependessem as suas vidas. E é provável que
dependam.”
Embora se anuncie como “um romance
musical”, esta primeira obra do músico e escritor Kalaf Epalanga,
membro da banda Buraka Som Sistema, é muito mais do que isso. É a
Esquina da Travessa com a Rua da Barroca e um pôr do sol no
Miradouro do Adamastor; é um cantor dominicano de merengues de nome Kalaff e um
turista brasileiro; é calulu com funge de milho e
são mixtapes em cassetes da BASF; é carregar baldes de cimento para
cima de um andaime e fritar frango teriyaki por menos de 4 euros à
hora; é o Mercado do Roque Santeiro e são os brancos “bollycao”;
é o número 73 da Poço dos Negros e é Jean Claude Van Damme; é o
amanhecer em Oslo, sombrio e silencioso, e é o aroma de um café
libanês; é um verso duma canção de Jay Z misturado com o choro
contido de uma jovem mulher eritreia; é o desânimo nos olhos do Zé
da Guiné; é escutar um fado na Parreirinha de Alfama, a própria
Argentina Santos, com 88 anos, sentada junto ao balcão; e é a
condição de emigrante a dar sentido ao discurso artístico do
escritor.
Dividido em três partes, cada uma
delas narrada na primeira pessoa por uma personagem diferente, o
livro oferece uma perspectiva muito concreta sobre o actual estado do
mundo e as pressões que sobre ele impendem. É certo que a música
tem um papel preponderante na acção, mostrando-se como elemento
aglutinador de estados de espírito e tomadas de consciência, as
questões sociais servindo-lhe de base (é muito curioso perceber,
por exemplo, como é que o nome de Anibal Cavaco Silva surge tão
intimamente ligado a um género musical fortemente exportável como é
a kizomba); mas é na forma como Kalaf Epalanga parte em busca de
respostas que acalmem o seu desassossego que o livro ganha espessura
e intensidade, tornando-se um ferrete que fere e morde o leitor. O Kalaf que
nos embala com os passos da Tarraxinha é o mesmo que diz que
“podemos endurecer as leis, fechar todas as fronteiras, mas já é
tarde demais. A Europa, tal como a conhecemos, morreu, e a culpa não
é dos imigrantes.”
Para quem não tem preconceitos de
género (musical, entenda-se), “Também os Brancos Sabem Dançar”
oferece uma oportunidade incrível de familiarização com o kuduro e
com as músicas e ritmos que lhe são próximos. O leitor mais
curioso poderá acompanhar a leitura com a audição dos muitos temas
ventilados no livro e, dessa forma, ficar a conhecer preciosas
pérolas como “Comboio 2”, d'Os lambas ou “Dança da Mãe Ju”,
de Dj Znobia, “Saia Branca”, de Nélson Freitas”, “Amba
Kuduro”, de Tony Amado ou “Yah”, dos Buraka Som Sistema. Mas
também nomes como Diplo, Carlos Burity, Elias Diá Kimuezo, Yuri da
Cunha ou grandes casas onde os novos ritmos africanos ganharam cor e
vida, do Mussulo ao Clube Mercado, do Kandando ao Kussunguila ou ao
Ondeando (talvez o Centro Comercial Colombo também deva figurar
nesta lista). Mas se quiser ir mesmo ao fundo da questão, irá
perceber que a kizomba e o kuduro são a banda sonora secreta de um
“filme” em que identidade é sinónimo de sobrevivência. Um grande livro!
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