Páginas

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

LIVRO: "Também os Brancos Sabem Dançar"



LIVRO: “Também os Brancos Sabem Dançar”,
de Kalaf Epalanga
Ed. Editorial Caminho, Novembro de 2017


“[O kuduro] nasceu da vontade da juventude angolana de expressar no movimento do corpo toda a energia recalcada, todo o luto, toda a alegria negada a jovens que querem ser como os outros, livres de existir para além da esperança média de vida, para lá do serviço militar obrigatório, para lá da malária e tantas outras privações de que muitos não têm sequer consciência. Não conseguem verbalizar, apenas sentem, e por isso dançam como se disso dependessem as suas vidas. E é provável que dependam.”

Embora se anuncie como “um romance musical”, esta primeira obra do músico e escritor Kalaf Epalanga, membro da banda Buraka Som Sistema, é muito mais do que isso. É a Esquina da Travessa com a Rua da Barroca e um pôr do sol no Miradouro do Adamastor; é um cantor dominicano de merengues de nome Kalaff e um turista brasileiro; é calulu com funge de milho e são mixtapes em cassetes da BASF; é carregar baldes de cimento para cima de um andaime e fritar frango teriyaki por menos de 4 euros à hora; é o Mercado do Roque Santeiro e são os brancos “bollycao”; é o número 73 da Poço dos Negros e é Jean Claude Van Damme; é o amanhecer em Oslo, sombrio e silencioso, e é o aroma de um café libanês; é um verso duma canção de Jay Z misturado com o choro contido de uma jovem mulher eritreia; é o desânimo nos olhos do Zé da Guiné; é escutar um fado na Parreirinha de Alfama, a própria Argentina Santos, com 88 anos, sentada junto ao balcão; e é a condição de emigrante a dar sentido ao discurso artístico do escritor.

Dividido em três partes, cada uma delas narrada na primeira pessoa por uma personagem diferente, o livro oferece uma perspectiva muito concreta sobre o actual estado do mundo e as pressões que sobre ele impendem. É certo que a música tem um papel preponderante na acção, mostrando-se como elemento aglutinador de estados de espírito e tomadas de consciência, as questões sociais servindo-lhe de base (é muito curioso perceber, por exemplo, como é que o nome de Anibal Cavaco Silva surge tão intimamente ligado a um género musical fortemente exportável como é a kizomba); mas é na forma como Kalaf Epalanga parte em busca de respostas que acalmem o seu desassossego que o livro ganha espessura e intensidade, tornando-se um ferrete que fere e morde o leitor. O Kalaf que nos embala com os passos da Tarraxinha é o mesmo que diz que “podemos endurecer as leis, fechar todas as fronteiras, mas já é tarde demais. A Europa, tal como a conhecemos, morreu, e a culpa não é dos imigrantes.”

Para quem não tem preconceitos de género (musical, entenda-se), “Também os Brancos Sabem Dançar” oferece uma oportunidade incrível de familiarização com o kuduro e com as músicas e ritmos que lhe são próximos. O leitor mais curioso poderá acompanhar a leitura com a audição dos muitos temas ventilados no livro e, dessa forma, ficar a conhecer preciosas pérolas como “Comboio 2”, d'Os lambas ou “Dança da Mãe Ju”, de Dj Znobia, “Saia Branca”, de Nélson Freitas”, “Amba Kuduro”, de Tony Amado ou “Yah”, dos Buraka Som Sistema. Mas também nomes como Diplo, Carlos Burity, Elias Diá Kimuezo, Yuri da Cunha ou grandes casas onde os novos ritmos africanos ganharam cor e vida, do Mussulo ao Clube Mercado, do Kandando ao Kussunguila ou ao Ondeando (talvez o Centro Comercial Colombo também deva figurar nesta lista). Mas se quiser ir mesmo ao fundo da questão, irá perceber que a kizomba e o kuduro são a banda sonora secreta de um “filme” em que identidade é sinónimo de sobrevivência. Um grande livro!

Sem comentários:

Enviar um comentário