LIVRO: “Jalan Jalan – Uma
Leitura do Mundo”,
de Afonso Cruz
Ed. Companhia das Letras, Novembro
de 2017
“Apesar da beleza da paisagem, dos
campos de arroz, do verde omnipresente, dos templos hindus, dos
macacos zangados, uma das melhores coisas que trouxe de Bali foi uma
oferta do João, que me embrulhou e ofereceu uma palavra, talvez
duas: Jalan significa rua em indonésio, disse-me. Também significa
andar. Jalan jalan, a repetição da palavra, que muitas vezes forma
o plural, significa, neste caso, passear. Passear é andar duas
vezes.”
Há livros cujas mensagens precisas
parecem apontar na nossa direcção. Livros que deixam propostas, que oferecem ideias, que
nos abrem as janelas para os detalhes, aquilo que nunca havíamos vislumbrado até então
e que agora surge aos nossos olhos tão nítido, tão inspirador. “Jalan Jalan” é um desses livros. Poderá não o ser
para todos os leitores, mas é-o para mim. Querem um exemplo entre
mil? “Como nunca viajava com máquina fotográfica, acabava por
passar muito tempo a olhar para tudo aquilo que sentia necessidade de
reter”, diz Afonso Cruz, com isso respondendo a uma dúvida que me
tenho colocado cada vez com maior insistência: - Regressas exausto de
uma viagem e trazes contigo cinco mil imagens guardadas nos cartões de memória, mas o que viste, realmente?
Sob o manto da viagem – em Julho
passado, o livro venceu por unanimidade a segunda edição do Grande
Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga, atribuído pela
Associação Portuguesa de Escritores -, o que “Jalan Jalan”
encerra é um convite ao leitor a que preste mais atenção ao mundo
que o rodeia e retire o maior partido do belo que se esconde nos
lugares mais insuspeitos. Afonso Cruz propõe um passeio que não
se mede pela distância ou pela técnica de colocar um pé à frente
do outro, antes pelo modo como nos tocam e comovem as paisagens
entrevistas e as ideias convocadas. Nas
movimentadas ruas de Taipei, num ruidoso souk do Cairo ou no alto de
uma duna da Jordânia, os lugares estão lá. Mas o que verdadeiramente importa está naquilo que embala os sentidos, seja o
sabor de uma sopa de peixe frito e massa, seja o aroma do fumo frutado dos
cachimbos ou a visão de um fulgurante pôr-do-sol, ainda que com um
escorpião por companhia.
Mais do que os lugares, importam as
pegadas que ficam nos espaços percorridos, “o compromisso, a união
amorosa entre o transitório e o eterno”. Da “Lógica da Batata”
ao “Paradoxo do Tamanho”, de “Pirâmides com Prédios Atrás”
a “Ser Pássaro” ou à “Definição de Deus”, o autor
oferece-nos uma leitura muito
particular do mundo, baseada nas suas experiências de viagens e no exercício auto-reflexivo delas resultante. Nas interpretações de Kurt Vonnegut, num poema
de Dylan Thomas, na evocação do martírio de Santa Vilgeforte ou
numa pintura de Mondrian, as situações reais ou os passos da imaginação narrados em
“Jalan Jalan” levam o leitor a pisar o mesmo chão de pensadores
e artistas, gente das ciências exactas, santos e mártires e a
atentar, através do seu olhar, naquilo que normalmente não veria.
Concluída a leitura, “Jalan Jalan”
escapa à estante e ao repouso entre lidos e por ler, antes
passa a ocupar um espaço preciso, na mesa da sala, ali à mão, para
que possa continuar a servir de guia e de fonte de inspiração, qualquer que seja o momento. É
lícito lê-lo de trás para a frente, saltando capítulos ou
abrindo-o ao calhas, já que haverá sempre um bom motivo de reflexão
que justifique o investimento “em tempo”. Sem uma cronologia
implícita, mas ligados entre si por um útil índice remissivo, os
duzentos e vinte e dois textos que o compõem não cessam de
fazer ouvir o seu chamamento. Ler o mesmo texto repetidamente
revela-se um exercício assaz enriquecedor, visto a cada nova leitura
corresponderem novos ensinamentos, tal a qualidade e alcance dos pensamentos que encerra. Guarde-se “Jalan Jalan”
como se guarda uma Bíblia. São múltiplas as linhas de leitura,
tantas quantas as viagens que se nos oferecem fazer. De Afonso Cruz, saberemos colher o mais valioso conselho.
Sem comentários:
Enviar um comentário