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terça-feira, 10 de dezembro de 2019

LIVRO: "Jalan Jalan - Uma Leitura do Mundo"




LIVRO: “Jalan Jalan – Uma Leitura do Mundo”,
de Afonso Cruz
Ed. Companhia das Letras, Novembro de 2017


“Apesar da beleza da paisagem, dos campos de arroz, do verde omnipresente, dos templos hindus, dos macacos zangados, uma das melhores coisas que trouxe de Bali foi uma oferta do João, que me embrulhou e ofereceu uma palavra, talvez duas: Jalan significa rua em indonésio, disse-me. Também significa andar. Jalan jalan, a repetição da palavra, que muitas vezes forma o plural, significa, neste caso, passear. Passear é andar duas vezes.”

Há livros cujas mensagens precisas parecem apontar na nossa direcção. Livros que deixam propostas, que oferecem ideias, que nos abrem as janelas para os detalhes, aquilo que nunca havíamos vislumbrado até então e que agora surge aos nossos olhos tão nítido, tão inspirador. “Jalan Jalan” é um desses livros. Poderá não o ser para todos os leitores, mas é-o para mim. Querem um exemplo entre mil? “Como nunca viajava com máquina fotográfica, acabava por passar muito tempo a olhar para tudo aquilo que sentia necessidade de reter”, diz Afonso Cruz, com isso respondendo a uma dúvida que me tenho colocado cada vez com maior insistência: - Regressas exausto de uma viagem e trazes contigo cinco mil imagens guardadas nos cartões de memória, mas o que viste, realmente?

Sob o manto da viagem – em Julho passado, o livro venceu por unanimidade a segunda edição do Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores -, o que “Jalan Jalan” encerra é um convite ao leitor a que preste mais atenção ao mundo que o rodeia e retire o maior partido do belo que se esconde nos lugares mais insuspeitos. Afonso Cruz propõe um passeio que não se mede pela distância ou pela técnica de colocar um pé à frente do outro, antes pelo modo como nos tocam e comovem as paisagens entrevistas e as ideias convocadas. Nas movimentadas ruas de Taipei, num ruidoso souk do Cairo ou no alto de uma duna da Jordânia, os lugares estão lá. Mas o que verdadeiramente importa está naquilo que embala os sentidos, seja o sabor de uma sopa de peixe frito e massa, seja o aroma do fumo frutado dos cachimbos ou a visão de um fulgurante pôr-do-sol, ainda que com um escorpião por companhia.

Mais do que os lugares, importam as pegadas que ficam nos espaços percorridos, “o compromisso, a união amorosa entre o transitório e o eterno”. Da “Lógica da Batata” ao “Paradoxo do Tamanho”, de “Pirâmides com Prédios Atrás” a “Ser Pássaro” ou à “Definição de Deus”, o autor oferece-nos uma leitura muito particular do mundo, baseada nas suas experiências de viagens e no exercício auto-reflexivo delas resultante. Nas interpretações de Kurt Vonnegut, num poema de Dylan Thomas, na evocação do martírio de Santa Vilgeforte ou numa pintura de Mondrian, as situações reais ou os passos da imaginação narrados em “Jalan Jalan” levam o leitor a pisar o mesmo chão de pensadores e artistas, gente das ciências exactas, santos e mártires e a atentar, através do seu olhar, naquilo que normalmente não veria.

Concluída a leitura, “Jalan Jalan” escapa à estante e ao repouso entre lidos e por ler, antes passa a ocupar um espaço preciso, na mesa da sala, ali à mão, para que possa continuar a servir de guia e de fonte de inspiração, qualquer que seja o momento. É lícito lê-lo de trás para a frente, saltando capítulos ou abrindo-o ao calhas, já que haverá sempre um bom motivo de reflexão que justifique o investimento “em tempo”. Sem uma cronologia implícita, mas ligados entre si por um útil índice remissivo, os duzentos e vinte e dois textos que o compõem não cessam de fazer ouvir o seu chamamento. Ler o mesmo texto repetidamente revela-se um exercício assaz enriquecedor, visto a cada nova leitura corresponderem novos ensinamentos, tal a qualidade e alcance dos pensamentos que encerra. Guarde-se “Jalan Jalan” como se guarda uma Bíblia. São múltiplas as linhas de leitura, tantas quantas as viagens que se nos oferecem fazer. De Afonso Cruz, saberemos colher o mais valioso conselho. 

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