TEATRO: “Ermelinda do Rio”.
de João Monge
Encenação | Maria João Luís
Interpretação | Maria João Luís
Cenografia | José Carretas
Música | José Peixoto
Interpretação Musical | Miguel
Leiria Pereira, Sofia Pires, Sofia Queiroz Orê-Ibir
Produção | Teatro da Terra
55 minutos | Maiores de 12 anos
Cine-Teatro de Estarreja
23 Nov 2019 | sab | 21:30
“Rebentaram as águas da terra, que
está grávida de morte e lama”
1967 foi um ano seco e o Outono também
começou sem chuva. Só no início de Novembro é que do céu desceu alguma água. Naquela noite, porém, a chuva caiu
como nunca se vira e o dia 26 de Novembro acordou sob o signo da
destruição e da morte. Os meteorologistas falam em “fenómeno
anormal, excepcional mesmo à escala centenária, de grande
concentração de chuva”, adiantando que a probabilidade de um
evento destes acontecer é de uma vez em cada cem anos. Loures,
Odivelas, Alverca, Alhandra, Arruda dos Vinhos, Castanheira do
Ribatejo, Vila Franca de Xira, Carregado ou Alenquer foram
localidades onde a chuva chegou a atingir os 170 litros por metro
quadrado. Em apenas cinco horas, registou-se um quinto da
precipitação verificada no ano inteiro. Só na aldeia de Quintas,
duzentas pessoas (mais de um terço da população) foram engolidas pela lama. Foi a maior catástrofe
natural que se abateu sobre a Grande Lisboa desde o terramoto de
1755.
Sob o signo da tragédia, escreveu João
Monge “Ermelinda do Rio”, peça que o Teatro da Terra
estreou no passado mês de Junho e que, nos caminhos da itinerância,
passou na noite de ontem por Estarreja. Apresentado como “nocturno
para voz e concertina”, com encenação e interpretação de Maria
João Luís, “Ermelinda do Rio” é um “poema narrativo” que
põe em diálogo uma mulher, sobrevivente da catástrofe, com a mãe,
que teve o lodo do Tejo como a sua última casa. Entre ambas, a filha
desta mulher que está longe, que decidiu partir com a promessa de
enviar à mãe um postal por cada terra onde passasse e se visse a
sorrir, “tão feliz, tão sonhadora, tão parva!...”
Mais de 50 anos volvidos sobre “a
noite do fim do mundo”, revive-se o drama em palco. O drama dos que partiram e dos
que, milagrosamente, sobreviveram. O Ti Manel Charroco foi um dos que
partiram. “(...) Era doido, as forças não o deixaram largar a casa.
Encheu a concertina de ar e disse: 'Esta sempre me salvou, é o meu
maior pulmão.' Entregou-se ao Tejo como quem se entrega a Deus e lá
foi, com um sudário de lama, até onde o Tejo tem o destino. Ainda
hoje, tantos anos depois, há quem oiça uma concertina a tocar nos
areais do Bugio.” Os que ficaram guardam na memória o espanto e a
dor: “Nunca mais comi peixe do rio. Já nem me lembra ao que sabe,
mas sabe àquilo que não me quero lembrar.”
O Portugal de Salazar não quis que a
tragédia falasse da sua real dimensão. “Não quiseram que se
soubesse. Nós sabíamos de nós, o problema era sabermos dos outros.
E os outros saberem de nós. E todos sabermos que somos imensos.
Mortos. Todos pobres. Todos mortos. Mortos com a morte dos pobres. A
morte dos pobres!... (…) Por isso proibiram a contagem: 'A partir
de agora não morre mais ninguém', mandaram dizer de Lisboa. Eu não
sei se entraste nas contas, mãe, mas é a ti que eu conto.” Ao traço
azul da censura escaparam as observações do Diário do Funchal:
“Nós não diríamos que foram as cheias, que foram as chuvas.
Talvez seja mais justo afirmar que foi a miséria – a miséria que
a nossa sociedade não neutralizou – que provocou a maioria dos
mortos. Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando
se morre por o ser”.
Testemunho dorido, embalado no som dos
contrabaixos que, em palco, tocados ao vivo, marcam a respiração de um drama interior longe de estar resolvido, “Ermelinda do
Rio” é um canto punjente à verdade e ao amor. É um momento único
de partilha, a dor da perda sempre presente, irmanado naqueles que
morreram de pranto, “uma cheia por dentro”. Comovente pela forma
como encarna a personagem, a vive e faz viver, Maria João Luís tem
aqui o desempenho de uma vida. “Olha o que ali vem mãe. Parece um
barquinho. Sim, é um barco, é um ponto de luz na nossa direcção.
É um barco a remos, sem ninguém a bordo. Ai!... É o barco do pai.
É o 'Ermelinda do Rio' e vem na nossa direcção. Os remos movem-se
ao ritmo de uma concertina. Parece que me quer. Olha o que está no
banquinho de meia-nau, mãe? O vestido! O vestido mais feio e mais
bonito do mundo. (…) O barco está à minha espera. Era assim que o
pai segurava nos remos. Mãe, estou a fazer bem? Mãe, eu volto...
Mas não sei se consigo... Mãe, há palavras que são conchas... São
tão lindos os teus olhos...”
[Foto: Vitorino Coragem |
teatrodaterra.wordpress.com]
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