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domingo, 24 de fevereiro de 2019

CERTAME: "Festival Literário Correntes D'Escritas 2019"


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CERTAME: “Festival Literário Correntes D'Escritas 2019”
Cine-Teatro Garrett, Póvoa de Varzim
Galerias Euracini 2 e outros locais
16 Fev > 26 Fev 2019


Nesta que foi a minha estreia nas “Correntes D'Escritas”, festival literário que cumpriu este ano a sua vigésima edição, é com entusiasmo que falarei nesta breve crónica daquilo a que me foi dado assistir e que tão fortemente me marcou. Falarei, desde logo, das quatro mesas às quais assisti, onde pontuaram alguns nomes que eu muito respeito e de quem muito tenho lido, mas também outros que se revelaram magníficas descobertas. Ainda dos lançamentos de livros, do cruzamento com escritores e de um dedo de conversa que os intervalos sempre proporcionam, dos livros nos quais vamos colhendo uma dedicatória e um autógrafo. Também de duas magníficas exposições de fotografia, da autoria de Ana Carvalho e de Alfredo Cunha, das quais falarei separadamente. Mas, sobretudo, do público, essa mole imensa de gente que esperou ordeiramente largo tempo nas filas para depois esgotar sessões atrás de sessões, que são a prova do sucesso desta iniciativa e a cuja voz uno a minha neste canto de parabéns às “Correntes”, aos seus mentores e àqueles que tornam possível que tudo isto aconteça. Porque duma grande festa da palavra se trata e porque é uma festa realmente muito bonita.

No ano em que se comemora o centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen, as “Correntes” quiseram dedicar-lhe toda a atenção, buscando na sua obra – e em particular na obra poética – os temas das mesas redondas. “Não se perdeu nenhuma coisa em mim”, do poema “O Jardim e a Casa” deu o mote para uma mesa “amputada” de dois enormes nomes – o chileno Luís Sepulveda e João Pinto Coelho – e onde se falou de memória e de combate. De memória, porque é perdendo-a que perdemos aquilo que adquirimos ao longo duma vida – “olho para a minha biblioteca, para todos aqueles livros, e penso o que fazer para recordá-los... porque os esqueci” (David Toscana). De combate, para dizer que “o combate do escritor deve ser contra a auto-censura, para que não se perca nada em nós” (Filipe Homem Fonseca).

A mesa seguinte foi buscar ao poema “Apesar das Ruínas”, o verso “E nunca as minhas mãos ficam vazias”. Foi uma mesa riquíssima de intervenções e pensamentos, com Hélia Correia a colocar, legitimamente, uma certa nota de desconforto ao recusar-se a “trazer Sophia para o comum”, afirmando que “Sophia não se glosa, Sophia não é para ser objecto de perífrases”. Sandro William Junqueira trouxe-nos histórias amargas em torno da frota branca e das campanhas do bacalhau, Joel Neto pisou caminhos da antropologia ao dizer-nos que foi pela palavra que o Homo sapiens prevaleceu sobre as restantes espécies e Manuel Rui ofereceu-nos um longo poema, ele, as pombas e as bolinhas de miolo de pão no epicentro dum triângulo formado pela casa de Sophia, pelo Aljube e pela Sé de Lisboa. Finalmente, Miguel Sousa Tavares – sobre quem recai a enorme “responsabilidade” de ser filho de Sophia de Mello Breyner – a dizer-nos que “as mãos que nunca ficam vazias são as mãos que escrevem contra a miséria do mundo!”.

O último dia das “Correntes” não poderia ter começado da melhor forma, com “Pois é preciso saber que a palavra é sagrada”, do poema “Com Fúria e Raiva”, a servir de ideia ao pensamento de seis ilustres escritores. Da Argentina, Natalia Porta Lopez veio “pedir desculpa” a Sophia, dizendo-lhe não acreditar que a palavra seja sagrada, nisso corroborada por José Milhazes, para quem só a palavra de honra é sagrada: “Se a palavra fosse sagrada, as gentes da Póvoa pecavam a cada dois segundos”. Milhazes que mexeu com algum público – às tantas, ouviu-se na sala um sonoro “abaixo a reacção”, ao manifestar a sua repulsa perante a palavra utopia e ao afirmar que “as revoluções são feitas por líricos e idiotas úteis”. Ana Cristina Silva diria que “as palavras são sagradas quando iluminam, quando lançam na noite o seu breve lampejo” e António Tavares confessaria desconhecer se as palavras são sagradas, “mas são seguramente tramadas, sobretudo para quem, como o escritor, tem de viver delas”. Alice Brito teve uma intervenção emocionada (e emocionante), para nos dizer que “é preciso saber que a palavra é sagrada”, acusando “as redes ditas sociais de propalarem o nada” e afirmando que “um jantar em frente à televisão é a síntese perfeita do pão e circo”. A última intervenção foi de Afonso Reis Cabral que nos mostrou que “as palavras são sagradas porque extraem o que há de melhor em nós, nos tornam humanos”.

Muito mais leve que as anteriores, a última mesa a que tive o privilégio de assistir submeteu-se a “Este é o tempo em que os homens renunciam”, do poema “Este Tempo”. Nela, Afonso Cruz falou (e mostrou imagens) da Rua Mutanabi, em Bagdad, que se soube reerguer depois do sangrento atentado bombista de 05 de Março de 2012, lembrando-nos que “ainda que os tempos sejam obscuros, há sempre homens que não renunciam”. Pedro Vieira teve também a “muleta” do multimédia na sua intervenção, mas começou por avisar que não lê poesia: “Leio de tudo, leio os rótulos do Piripiri Sacana, mas poesia não”. Ondjaki teve uma hilariante saída ao “descobrir” um livro de Aurelino Costa no meio dos milhões de livros espalhados pelos passeios da Rua Mutanabi, facto que se devia ao “poderoso” Luís Diamantino. Apesar da confessada incapacidade em manter uma linha de pensamento, Rui Zink falou de professores universitários e de pepinos-do-mar, disse-nos que “o Alzheimer é uma bela metáfora para o século XXI” e lembrou que uma palavra traz sempre o seu contrário: “Quando nasceu a palavra, nasceu o silêncio”. E assim me calo... até para o ano!

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