LIVRO: “Pão de Açucar”,
de Afonso Reis Cabral
Edição | Maria do Rosário
Pedreira
Publicações Dom Quixote, Setembro
de 2018
Saio da leitura de “Pão de Açucar”
com a ideia reforçada de que há palavras, actos, situações que,
pela sua natureza, não podem cair no esquecimento. Sobretudo quando
assentam na crueldade e na ignomínia e constituem um ataque aos
valores pelos quais a sociedade se deve reger. Levando a ficção a
beber no real, a literatura tem encontrado aqui um campo fértil, dando como exemplo mais recente o extraordinário “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”,
de Bruno Vieira Amaral. E este será, porventura, o grande mérito do livro, o de recuperar uma história que nos compele a
manter a guarda alta contra as Urban Beach, Esquadras de Alfragide,
acordãos de penas suspensas para violadores de jovens inconscientes,
vigilantes da STCP e demais monstruosidades deste pequeno jardim à
beira mar plantado.
“Pão de Açucar” narra o caso de
Gisberta Salce Junior, transexual que acabou afogada no poço dum
prédio em construção, no Porto. Ocorrido em Fevereiro de 2006, o
crime foi particularmente mediatizado, até porque perpetrado por um
grupo de 14 menores institucionalizados e revestindo-se duma maldade
doentia e gratuita que não terá nunca perdão. Estamos perante um
caso que despertou as consciências para a crua realidade da
intolerância e do ódio contra os homossexuais e que levou à
criação de legislação que fez com que um grande número de
homens e mulheres passassem a ser aceites pela sociedade. Recorrendo à ficção, foi este o desafio que o autor ousou
enfrentar, o de contar uma história que estava contada por natureza.
Segundo romance de Afonso Reis Cabral,
“Pão de Açucar” surge com uma décalage de quase quatro anos em
relação ao aclamado “O Meu Irmão” – obra com a qual o
escritor ganhou o Prémio Leya 2014 –, sendo legítimo estabelecer
uma comparação entre ambos. E aí “Pão de Açucar” sai a
perder, a ficção vergada ao peso duma realidade que, de tão
brutal, a ultrapassa. A confirmá-lo está a brilhante peça jornalística
de Catarina Marques Rodrigues, publicada no
Observador em 21 de Fevereiro de 2016 (dez anos volvidos sobre os
acontecimentos), que bebe da fonte processual tal como o livro e que reforça precisamente a ideia de quão ténue pode ser a linha entre o real e a ficção. Ainda assim, “Pão de
Açucar” resiste, afirmando-se como uma obra que não dá o tempo
do leitor por mal empregue.
De muito bom no livro temos o traçado
do mapa onde os pequenos predadores se movimentam, a caracterização
das instituições onde se recolhem e os momentos aí passados, os
diálogos que soam genuínos e todo o desvendar da
história de Gisberta, da descoberta da sua natureza feminina à glória nas passereles do Porto e ao declínio, o
inferno numa cave dum prédio embargado, o corpo doente moído de
pancada por um bando de miúdos cujo fascínio era ver um gajo de mamas. Sem desculpabilizar os
autores do crime, Afonso Reis Cabral encontra atenuantes para os
actos cometidos e aposta na humanização das suas personagens, daqui decorrendo as maiores fragilidades do livro. Caminhando na linha de fronteira entre o racional e o emocional, o fio narrativo de “Pão de Açucar” arrisca, de alguma forma, a cair na lamechice. No final, fico com um sentimento de desconforto e até de alguma conflitualidade interior, o que não terá apenas a ver com uma história deveras chocante.
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