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sexta-feira, 15 de junho de 2018

LIVRO: "A Gargalhada de Augusto Reis"



LIVRO: “A Gargalhada de Augusto Reis”,
de Jacinto Lucas Pires
Ed. Porto Editora, Maio de 2018


“Belo título”! Quase consigo imaginar Jacinto Lucas Pires a rir às gargalhadas com esta tirada de mestre, a última de muitas gargalhadas dispersas ao longo das páginas do livro, na altura em que acabava de escrever as derradeiras palavras. “A Gargalhada de Augusto Reis” é, na verdade, um delicioso divertimento, uma longa rêverie ou, se preferirmos, uma imensa gargalhada em torno de pequenos nadas, equívocos e contradições da vida de todos os dias, com o autor a mostrar-se exímio na forma como dá sentido a uma história que se reparte entre um tempo hoje e um outro, distante 44 anos, o 25 de Abril de 1974 a servir de marco natural daquilo a que poderemos chamar acção. Sem uma linha precisa, a narrativa voga ao sabor dos caprichos do escritor, genial na forma como retorce as suas personagens e as molda ao fio e à medida da(s) história(s), assim conduzindo o leitor nos trilhos deste quase devaneio literário, onde se torna evidente, em todo o seu esplendor, a arte de manipular.

É realmente fascinante perceber como Lucas Pires começa por cativar o leitor com três histórias ao encontro de três personagens aparentemente desfasadas entre si, nas quais se misturam revolução e Estado Novo, pobreza e opressão, sexo e cinema. E depois vemos que nada disto é matéria do livro (ou talvez seja tudo isto ao mesmo tempo). Cada passagem é como uma suculenta e fumegante torrada com manteiga que o autor, por mão própria, nos aproxima da boca, para a retirar no momento preciso em que, salivantes, nos preparamos para lhe desferir uma vigorosa dentada. Se quiséssemos uma prova provada da verdade deste facto, teríamos a própria poesia. Este é um livro que respira poesia, se alimenta dela, a enumera e reverencia ao virar de cada página… mas onde não encontramos um só poema, uma parcela que seja. Quando muito, um título!

Neste livro vem ao de cima a forte ligação do escritor com o cinema e as artes do palco, exímio em criar imagens a partir das situações mais banais. Uma página escrita, adormecida no alto dum monte de lixo, assemelha-se à pele de alguns peixes, o travo dum certo uísque escocês pode conter uma casa inteira a arder e Li Bai, Mallarmé e Manuel Bandeira cabem por inteiro num covilhete duma certa pastelaria em Vila Real. Penso não dever revelar mais do que já revelei, convidando aqueles que quiserem aprofundar o assunto a lerem a sinopse (não será difícil encontrá-la na net, afinal a crítica quase se reduz a sinopses hoje em dia). Aquilo que posso asseverar é que “A Gargalhada de Augusto Reis” tem de ser lido e saboreado em estado virgem. Um livro que é, todo ele, um “poema em cima da hora”, de tal forma a vida roda célere e os pequenos nadas de que é feita tornam as pessoas mais próximas e mais iguais, nas ambições ou na dúvida, nas emoções ou na poesia, na forma como manipulam ou se deixam manipular. E depois, na vida, como na escrita, haverá toda uma arte que fará a diferença!

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