LIVRO: “A Gargalhada de Augusto
Reis”,
de Jacinto Lucas Pires
Ed. Porto Editora, Maio de 2018
“Belo título”! Quase consigo
imaginar Jacinto Lucas Pires a rir às gargalhadas com esta tirada de
mestre, a última de muitas gargalhadas dispersas ao longo das
páginas do livro, na altura em que acabava de escrever as
derradeiras palavras. “A Gargalhada de Augusto Reis” é, na
verdade, um delicioso divertimento, uma longa rêverie ou, se
preferirmos, uma imensa gargalhada em torno de pequenos nadas,
equívocos e contradições da vida de todos os dias, com o autor a mostrar-se exímio na
forma como dá sentido a uma história que se reparte entre um tempo
hoje e um outro, distante 44 anos, o 25 de Abril de 1974 a servir de
marco natural daquilo a que poderemos chamar acção. Sem uma linha
precisa, a narrativa voga ao sabor dos caprichos do escritor, genial
na forma como retorce as suas personagens e as molda ao fio e à
medida da(s) história(s), assim conduzindo o leitor nos trilhos
deste quase devaneio literário, onde se torna evidente, em todo o
seu esplendor, a arte de manipular.
É realmente fascinante perceber como Lucas Pires começa por cativar o leitor com três histórias ao
encontro de três personagens aparentemente desfasadas entre si, nas
quais se misturam revolução e Estado Novo, pobreza e opressão,
sexo e cinema. E depois vemos que nada disto é matéria do
livro (ou talvez seja tudo isto ao mesmo tempo). Cada passagem é
como uma suculenta e fumegante torrada com manteiga que o autor, por
mão própria, nos aproxima da boca, para a retirar no momento
preciso em que, salivantes, nos preparamos para lhe desferir uma
vigorosa dentada. Se quiséssemos uma prova provada da verdade deste
facto, teríamos a própria poesia. Este é um livro que respira
poesia, se alimenta dela, a enumera e reverencia ao virar de cada
página… mas onde não encontramos um só poema, uma parcela que
seja. Quando muito, um título!
Neste livro vem
ao de cima a forte ligação do escritor com o cinema e as artes do palco, exímio em criar imagens a
partir das situações mais banais. Uma página escrita, adormecida
no alto dum monte de lixo, assemelha-se à pele de alguns peixes, o
travo dum certo uísque escocês pode conter uma casa inteira a arder
e Li Bai, Mallarmé e Manuel Bandeira cabem por inteiro num covilhete
duma certa pastelaria em Vila Real. Penso não dever revelar mais do que já revelei, convidando aqueles que quiserem aprofundar o assunto a lerem a sinopse (não será difícil encontrá-la na net, afinal a
crítica quase se reduz a sinopses hoje em dia). Aquilo que posso
asseverar é que “A Gargalhada de Augusto Reis” tem de ser lido e
saboreado em estado virgem. Um livro que é, todo ele, um “poema em
cima da hora”, de tal forma a vida roda célere e os pequenos nadas
de que é feita tornam as pessoas mais próximas e mais iguais, nas
ambições ou na dúvida, nas emoções ou na poesia, na forma como
manipulam ou se deixam manipular. E depois, na vida, como na escrita, haverá
toda uma arte que fará a diferença!
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