LIVRO: “Ensina-me a voar sobre os
telhados”,
de João Tordo
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Março de
2017
Lembro-me de ser criança e de ter um
sonho recorrente no qual era capaz de voar. Tomado de tal leveza, o
meu corpo elevava-se no sono, atravessava a placa da casa e o telhado
e, erguendo-se a grande altura, permitia-me ver, com uma nitidez única, os campos onde brincava com os meus amigos, o coradouro onde jogávamos à
bola, os pardais que voavam em bando por baixo de mim, o rio com os
seus peixes que apanhávamos à mão no auge das férias grandes. E
eu sorria, sorria sempre. Não posso mais esquecer a felicidade que
sentia quando “levitava”. Ainda que em sonhos, estava ali a
materialização desse secreto desejo de voar que anima o homem desde
que se lembra de ser homem. O tempo foi passando, os sonos
tornaram-se mais leves e curtos, os sonhos esparsos, quase raros.
Nunca mais “levitei”. Só agora voltei a fazê-lo, graças à
leitura de “Ensina-me a voar sobre os telhados”.
De João Tordo recordo, para além dos
livros que lera anteriormente – “O Paraíso segundo Lars D.” e
“Biografia Involuntária dos Amantes” –, uma conversa pela
noite fora no Museu de Ovar, em Dezembro de 2017, na qual o escritor
disse esta coisa espantosa: “Escrever é deixar que todas as vozes
que temos dentro de nós venham ao de cima e falem”. Procurando
concretizar a ideia, falou das vozes que, surgidas do nada, ia
anotando em pedacinhos de papel e que, “na hora da verdade”,
reunia e escutava. É assim que gosto de imaginá-lo, à secretária,
a escrever este livro, o tampo da mesa a transbordar de papelinhos de
diferentes tamanhos, alguns de cores que não o branco. É nesses,
mais chamativos, que julgo encontrar uma espécie de lembrete com
“diálogos de Ménon, de Platão”, ainda “o dilema não é não
sabermos, é não saber que sabemos”, ou mesmo “a vida humana não
é marcada pela ignorância, mas pelo esquecimento”.
Nas breves citações do final do
parágrafo anterior encontrei eu um fio condutor desta história que
percorre a vida duma família ao longo de três gerações, à medida
que nos vamos dando conta de um terrível segredo. Trata-se dum fio
muito ténue, talvez de seda, difícil de perceber, mais difícil
ainda de alcançar, mas que anda por ali para nos lembrar que não
devemos desistir de acreditar no impossível. Estou certo que outros
leitores farão do livro outras leituras, escutarão outras vozes,
chorarão outros choros e rirão outros risos. Mas todos encontrarão
no livro espaço para que as vozes que existem em cada um venham ao
de cima e falem também.
“Observo o meu rosto no vidro,
inundado pela luz, e descubro que estou a sorrir”. É a última
frase do livro de João Tordo, mas nenhuma outra poderia traduzir
melhor o estado de felicidade em que me encontro, tornada que foi a
derradeira página de “Ensina-me a voar sobre os telhados”. Foram
dias de prazer e devaneio, de sonho e de reflexão, sobretudo duma
profunda emoção perante prosa tão límpida e leve, tão rica de
imagens e de emoções, tão bem articulada nos tempos distintos em
que se desenvolve, ritmada como um poema, intensa como o aroma da
terra molhada após uma tempestade de Verão. Agora que chego ao fim,
é realmente com um sorriso que aperto o livro entre as mãos para o
depositar em seguida na estante, deixando-o a descansar num lugar do
lado esquerdo, do lado do coração.
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