Páginas

quarta-feira, 2 de maio de 2018

LIVRO: "Ensina-me a voar sobre os telhados"



LIVRO: “Ensina-me a voar sobre os telhados”,
de João Tordo
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Março de 2017


Lembro-me de ser criança e de ter um sonho recorrente no qual era capaz de voar. Tomado de tal leveza, o meu corpo elevava-se no sono, atravessava a placa da casa e o telhado e, erguendo-se a grande altura, permitia-me ver, com uma nitidez única, os campos onde brincava com os meus amigos, o coradouro onde jogávamos à bola, os pardais que voavam em bando por baixo de mim, o rio com os seus peixes que apanhávamos à mão no auge das férias grandes. E eu sorria, sorria sempre. Não posso mais esquecer a felicidade que sentia quando “levitava”. Ainda que em sonhos, estava ali a materialização desse secreto desejo de voar que anima o homem desde que se lembra de ser homem. O tempo foi passando, os sonos tornaram-se mais leves e curtos, os sonhos esparsos, quase raros. Nunca mais “levitei”. Só agora voltei a fazê-lo, graças à leitura de “Ensina-me a voar sobre os telhados”.

De João Tordo recordo, para além dos livros que lera anteriormente – “O Paraíso segundo Lars D.” e “Biografia Involuntária dos Amantes” –, uma conversa pela noite fora no Museu de Ovar, em Dezembro de 2017, na qual o escritor disse esta coisa espantosa: “Escrever é deixar que todas as vozes que temos dentro de nós venham ao de cima e falem”. Procurando concretizar a ideia, falou das vozes que, surgidas do nada, ia anotando em pedacinhos de papel e que, “na hora da verdade”, reunia e escutava. É assim que gosto de imaginá-lo, à secretária, a escrever este livro, o tampo da mesa a transbordar de papelinhos de diferentes tamanhos, alguns de cores que não o branco. É nesses, mais chamativos, que julgo encontrar uma espécie de lembrete com “diálogos de Ménon, de Platão”, ainda “o dilema não é não sabermos, é não saber que sabemos”, ou mesmo “a vida humana não é marcada pela ignorância, mas pelo esquecimento”.

Nas breves citações do final do parágrafo anterior encontrei eu um fio condutor desta história que percorre a vida duma família ao longo de três gerações, à medida que nos vamos dando conta de um terrível segredo. Trata-se dum fio muito ténue, talvez de seda, difícil de perceber, mais difícil ainda de alcançar, mas que anda por ali para nos lembrar que não devemos desistir de acreditar no impossível. Estou certo que outros leitores farão do livro outras leituras, escutarão outras vozes, chorarão outros choros e rirão outros risos. Mas todos encontrarão no livro espaço para que as vozes que existem em cada um venham ao de cima e falem também.

“Observo o meu rosto no vidro, inundado pela luz, e descubro que estou a sorrir”. É a última frase do livro de João Tordo, mas nenhuma outra poderia traduzir melhor o estado de felicidade em que me encontro, tornada que foi a derradeira página de “Ensina-me a voar sobre os telhados”. Foram dias de prazer e devaneio, de sonho e de reflexão, sobretudo duma profunda emoção perante prosa tão límpida e leve, tão rica de imagens e de emoções, tão bem articulada nos tempos distintos em que se desenvolve, ritmada como um poema, intensa como o aroma da terra molhada após uma tempestade de Verão. Agora que chego ao fim, é realmente com um sorriso que aperto o livro entre as mãos para o depositar em seguida na estante, deixando-o a descansar num lugar do lado esquerdo, do lado do coração.

Sem comentários:

Enviar um comentário