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terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

TEATRO: "1984"



TEATRO: “1984”,
de George Orwell 
Adaptação | Robert Icke, Duncan Macmillan
Tradução | Eduardo Calheiros Figueiredo
Encenação | Pedro Carraca
Cenografia e Figurinos | Rita Lopes Alves
Interpretação | Ana Castro, Carolina Salles, Gonçalo Carvalho, Inês Pereira, Paulo Pinto, Pedro Caeiro, Raquel Montenegro, Tiago Matias, Victor Gonçalves 
Produção | Artistas Unidos
120 Minutos | Maiores de 14 Anos
Ponto C - Cultura e Criatividade, Penafiel
08 Fev 2025 | sab | 17h00


A viverem o mais conturbado período de uma existência de quase três décadas, ainda sem casa onde morar e em risco de extinção, os Artistas Unidos trouxeram ao magnífico espaço do Ponto C a peça “1984”, de George Orwell, na visão premiada de Robert Icke e Duncan Macmillan. Tendo como ponto de partida um grupo de pessoas que lê o diário de Winston Smith, personagem principal da obra, a peça explora os princípios da “novilíngua”, espécie de idioma assente na remoção e condensação das palavras, assim como dos seus significados comuns, de modo a permitir ao governo autoritário da Oceânia, um dos três super-Estados beligerantes em que o mundo se organizou, restringir e controlar o pensamento dos seus cidadãos. Retrato de uma realidade distópica, “1984” mergulha o espectador num regime totalitário, no qual este elaborado instrumento linguístico impede a expressão dos sentimentos, bem como a criação de conceitos abstratos com recurso à memória, ao mesmo tempo que anula qualquer percepção de poder existir outra linguagem. Com ela, palavras como honra, coragem, vergonha, dignidade e liberdade deixam de existir. É o fim da liberdade de opinião, o fim do livre pensamento.

Protagonista da obra, Winston Smith sonha com um mundo livre. Conhece o processo de alienação. Trabalha no Ministério da Verdade, reescreve o passado conforme a “novilíngua” e tem de destruir a evidência dos factos incómodos para que uma nova história, com novas lógicas e “verdades”, possa ser erigida. Apesar do risco, tem um diário pessoal, o que é pura transgressão. O sentimento de revolta é reforçado quando conhece Júlia e por ela se apaixona. Seduzido por O’Brien e pelo que parece ser um nicho de oposição, Winston acaba por se tornar num peão deste, afinal um agente do regime, e é capturado. No final, para poder sobreviver, sobra-lhe apenas a denúncia e a submissão plena ao Grande Irmão. Num cenário despojado e futurista, a peça convida à reflexão a partir de um conjunto de premissas que a impregnam de uma enorme actualidade. “Não devíamos ter confiado neles” é uma frase escutada recorrentemente e que ganha uma pertinência e um alcance enormes face às convulsões que o mundo sofre actualmente, com a escalada da extrema direita e a ascensão dos regimes fascistas, fortemente securitários, assentes na vigilância e na repressão, inimigos da paz, da liberdade e da democracia.

Verdadeiro teste à tolerância do público face à violência que dela se derrama, a peça coloca em perspectiva a obra-prima de George Orwell, transformando em passado longínquo o futuro que o autor desenhou em 1948 (o título será um anagrama da data), sobre factos ocorridos em 1984, ao situá-lo num vindouro ano para lá de 2050. Assim, para além da história de Winston Smith, que não sabemos se verdadeira ou não, aquilo a que assistimos é à história do próprio romance ao longo do tempo decorrido desde que foi escrito, e de como é que o livro contribuiu ou não para alterar a nossa visão de futuro. Em que tempo situar este comum funcionário do Ministério da Verdade, onde tem como tarefa primária manter a coerência entre os “factos” e o discurso oficial, sabendo que está prestes a cometer um “crimepensar”, a partir do momento em que escrever as primeiras palavras no seu diário? Que “polícias do pensamento” estarão a preparar-se para apagar tudo o que tenhamos feito, interditando a nossa existência passada para, depois, sermos votados ao esquecimento, num processo de eliminação, aniquilação e “despessoalização”?

Quando pensamos no “big brother”, essa figura ambígua que simboliza a liderança num Estado totalitário que tudo vê e tudo escuta, sentimos que George Orwell previu bem o futuro. De facto, é praticamente impossível estar hoje numa sala sem que estejam presentes uma câmara de gravação e um microfone, algo que qualquer dos nossos telemóveis possui. Os mesmos telemóveis que permitem que cada um de nós possa ser alvo de vigilância, escuta e localização. Não apenas por isso, mas também, a peça junte à violência física que se abate sobre os que são presos e torturados, a violência psicológica de nos sabermos encerrados num círculo que se aperta a cada dia, que controla os nossos movimentos e nos vai tolhendo o pensamento e a liberdade de expressão. O colectivo de nove actores que, em palco, se entrega para dar corpo à história, tem uma prestação convincente. Entre quem sonha e quem impede de sonhar, as representações são credíveis na sua essência, intensas na sua verdade. Sem concessões ao supérfluo ou ao excessivo, o ritmo da peça é alucinante e a versatilidade dos cenários permite explorar uma vasta gama de meios, com destaque para o vídeo, que a abrilhantam e enriquecem. Necessária e urgente, “1984” é uma peça a não perder.

[Foto: Teatro Municipal da Guarda | https://www.facebook.com/teatromunicipalguarda]

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

TEATRO: "A Coragem da Minha Mãe"



TEATRO: “A Coragem da Minha Mãe”,
de George Tabori
Tradução | António Carlos Conde
Encenação | Jorge Silva Melo
Cenografia e figurinos | Rita Lopes Alves
Interpretação | Pedro Carraca, Antónia Terrinha, Hélder Braz
Produção | Artistas Unidos
75 Minutos | Maiores de 12 anos
Cine-Teatro de Estarreja
05 Fev 2022 | sab | 21:30


Estreado em Novembro de 2020 no Teatro da Politécnica, “A Coragem da Minha Mãe” vem trilhando, desde finais do ano passado, os caminhos da itinerância. Em Estarreja, perante uma plateia bem composta, Pedro Carraca, Antónia Terrinha e Hélder Braz deram corpo às personagens de um drama que nos fala da improvável salvação da mãe do dramaturgo húngaro George Tabori, contada pelo próprio, aquando da deportação de judeus de Budapeste para Auschwitz em julho de 1944. Uma história real, acrescente-se, de uma mulher que aos 55 anos se dirige a casa da irmã para um jogo de cartas, sendo presa e logo conduzida para a estação central de comboios onde é metida num vagão de gado, juntamente com outras quatro mil pessoas, com destino ao campo de extermínio de Auschwitz. Mas o impensável acontece e Elsa irá viver uma história mirabolante, marcada pelo absurdo e com um final feliz. Doze horas depois, a mulher estará de regresso a Budapeste e à casa da irmã para o prometido jogo de rummy.

Um piano, um cadeirão, mesa e cadeiras, uma cómoda com um naperon, um rádio e um candeeiro, são alguns dos elementos que adornam o palco. Ao centro, uma poltrona onde se senta a mãe e uma cadeira para o filho, embora este esteja quase sempre de pé enquanto vai desfiando esta história improvável e escutando da mãe as pequenas correcções à narrativa. Há pouco de interessante ou de inovador no espaço cénico, as vozes gravadas que se ouvem em fundo pouco acrescentam em termos de ambiente e as interpretações não descolam do registo convencional. Mas há um texto e uma mensagem que, esses sim, colocam esta peça num lugar à parte no universo do teatro. Uma mensagem que é vista como “a resposta subversiva de Tabori à Mãe Coragem de Brecht” ao promover um universo interpolado e fragmentado e a total inversão de expectativas.

Paródia? Talvez possamos classificá-la assim, admitindo que a peça nos fala da vida a rir de si própria. Num mundo desagregado, regido por um Estado ameaçador e brutal, com vizinhos que se tornam inimigos da noite para o dia, pessoas tratadas como animais, sobreviventes que carregam o peso da culpa, homens e mulheres que se refugiam em casa entregues à sua descrença, Elsa, a mãe de Tabori, é tudo menos uma heroína. É ela a primeira a negar a temeridade e bravura dos seus actos, interrompendo constantemente o filho para lhe dizer que “não foi bem assim”. Entre as peripécias que envolvem a detenção de Elsa, o episódio de cariz sexual com um estranho em plena viagem de comboio e a existência de um salvo-conduto da Cruz Vermelha, a dúvida instala-se. A única certeza parece saída de um conto infantil: “Se fores uma boa menina nada de mal te poderá acontecer”.