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quinta-feira, 20 de novembro de 2025

TEATRO: “Chuva Pasmada” | Mia Couto



TEATRO: “Chuva Pasmada”
Texto original | Mia Couto
Adaptação, direcção artística e encenação | Leandro Ribeiro
Compositor, pianista | Hélder Bruno Martins
Interpretação | Clara Oliveira, Mafalda Reis, Maria Inês Campos, Paulo Cruz e Rita Camões, com elementos da comunidade local, Ana Albertina Pereira, Ana Silva, Ana Gabriela Tavares, Augusta Graça, Daniela Morence, Helena Barbosa, Isabela Amaral, João Figueiredo, Lucas Silva, Luiza Cassin, Mário Silva, Mónica Pires, Natália Fernandes e Vasco Figueiras
Produção | Sol d’Alma – Associação de Teatro
100 Minutos | Maiores de 6 anos
Centro das Artes do Espectáculo Sever do Vouga
16 Nov 2025 | dom | 16:00


Depois da estreia em Ovar, no passado mês de Setembro, “Chuva Pasmada” voltou à cena para uma representação única em Sever do Vouga. Em dia de festa e de celebração pelo 24.º aniversário do seu Centro das Artes do Espectáculo, os severenses cruzaram-se com a prosa poética de Mia Couto e perceberam, entre nuvens remexidas e lentilhas atiradas ao ar, que o teatro é também uma forma de salvação. Numa peça que tanto disse a muitos dos presentes – “Chuva Pasmada” foi mesmo a minha estreia em palco -, olhá-la do lado do espectador, após ter sido vivida na pele do actor, não podia deixar de ter um significado especial. Não que nela não houvesse já a certeza da viagem, o assombro do reencontro com a escrita de Mia Couto, a inteligência e delicadeza de uma encenação atenta ao mais ínfimo detalhe, a embriaguez de uma música emotiva, o espanto perante tão poderosas interpretações. Mas porque voltar a mergulhar num texto onde a chuva se detém pasmada e a mente aprende a sonhar, é renovar a ideia de que o teatro prolonga a página, que a palavra dita faz eco no sentir, que as emoções invadem o coração como água: “Clara, farta, risonha”.

“Chuva Pasmada” é um imenso, intenso milagre. A sensibilidade que Mia Couto coloca em cada palavra, a forma como, entre a voz e o silêncio, leva a que identidade e memória dancem em comunhão, é um convite à autodescoberta, um rasgar de atalhos para o mais fundo de cada um de nós. Motor secreto da peça e do romance, o amor é semente capaz de transformar dúvidas em certezas, a hesitação em voo, o receio em pertença. A materialização de todo este imaginário fabuloso constrói-se em comunhão de talentos: Onde apenas existiam telas, as luzes abrem rios; o vazio veste-se de emoção ao som de uma música inspirada; o invisível faz-se presente na riqueza dos sons; os figurinos acrescentam cor à própria respiração. E há os actores, enormes de talento, a provarem que o teatro é vida... e a vida é o teatro. Em harmonia, tudo vibra como na pequena aldeia, onde o natural e o sobrenatural se passeiam de mãos dadas e as histórias adormecidas vêm à superfície ao menor rumor de transformação ou magia.

Em Sever do Vouga, palco e plateia voltaram a partilhar os mesmos ventos. Ambos foram lugares de fronteira ao longo da qual nos reinventámos face aos nossos medos e incertezas, à nossa própria finitude. Nesse lugar de partilha, onde a inocência das crianças e o saber dos mais velhos alcança o equilíbrio num mesmo fôlego, é em conjunto que se molda o corpo ao verbo e o verbo ao corpo. Em Sever do Vouga, como em Ovar, o teatro levou a que cada espectador fizesse o mais difícil, o olhar-se no outro, o ver-se nele sem sobranceria ou imodéstia – antes de forma cúmplice, com humildade e empatia, actores que todos somos no palco desta vida. Então fomos capazes de rir e chorar, na certeza de quem aceita sonhar o mesmo sonho. Da vulnerabilidade de uns e do silêncio atento de outros, nasceu um pacto invisível entre quem sabe reconhecer-se na mesma emoção, o palco como espelho encantado onde cada gesto encontra quem o acolha e cada olhar abraça quem o transforme em magia. No final, todos - narradora com narradora, forasteiro com forasteiro, patrão da fábrica com patrão da fábrica - se cingiram num abraço, gratos pelo milagre que é o teatro.

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