CINEMA: “Lavagante”
Realização | Mário Barroso
Argumento | António-Pedro Vasconcelos
Fotografia | Mário Barroso
Montagem | Micael Espinha
Interpretação | Francisco Froes, Nuno Lopes, Júlia Palha, Leonor Alecrim, Diogo Infante, Rui Morisson, Afonso Lagarto, José Alberto Lemos, Rodrigo Balseiro, Ricardo Rodrigues, Sérgio Martins, Rafaela Simas, Simão Costa, Rui Miguel, Carlos Leitão, Manuel Neto
Produção | Paulo Branco
Portugal | 2025 | Drama, Romance | 92 Minutos | Maiores de 12 Anos
Vida Ovar Castello Lopes
07 Out 2025 | ter | 19:00
De tempos a tempos, o cinema português surge como fórum privilegiado de interrogação e reconstrução da memória histórica da ditadura e das suas implicações políticas, sociais e morais. De forma crítica, é capaz de operar como instrumento de análise das estruturas de poder e das formas subtis de repressão que marcaram a ditadura, emergindo como um laboratório de memória colectiva, onde se revisitam traumas e se reconfiguram identidades. Filmes como “Brandos Costumes”, de Alberto Seixas Santos, “Os Mutantes”, de Teresa Villaverde, “A Costa dos Murmúrios”, de Margarida Cardoso ou “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, são exemplos de uma certa desmontagem dos mecanismos quotidianos de opressão e conformismo moral que sustentaram o Estado Novo. Por sua vez, “Capitães de Abril”, de Maria de Medeiros, e “Linha Vermelha”, de José Filipe Costa, questionam o próprio imaginário da revolução e da utopia. É nestas águas que “Lavagante” mergulha, afirmando-se no particular território da resistência simbólica, onde recordar é um gesto político e ético: Uma forma de compreender o que fomos, para continuar a pensar o que somos.
Realizado por Mário Barroso, aclamado director de fotografia com colaborações em alguns dos filmes mais emblemáticos de Manoel de Oliveira, João César Monteiro ou José Fonseca e Costa, “Lavagante” é uma alegoria pungente sobre um país paralisado, entre a repressão da ditadura e as frustrações da oposição democrática. Cecília, jovem calculista e enigmática, seduz Daniel, médico solidário com os estudantes durante a Crise Académica de 1962, mas acaba por trair a relação ao ceder à pressão sedutora e insidiosa de um inspector da polícia política. Através de uma história de predação e chantagem amorosa, o filme recompõe o universo masculino marialva e encena os impasses de uma geração esmagada entre a fraude eleitoral de 1958, a Guerra Colonial e a asfixia provocada pela censura, pela moral católica e pela brutalidade da PIDE. Conduzida retrospectivamente por um narrador interventivo e irónico, a narrativa instala-se num espaço onde o realismo social se cruza com a fábula, abrindo caminho à metáfora do lavagante — o animal que engorda a presa até devorá-la — e que se aplica tanto ao regime como às próprias personagens, consumidas por forças maiores do que elas.
Académico no melhor sentido do termo, filmado num preto e branco depurado e de enorme beleza, “Lavagante” vive da subtileza de um argumento apenas simples na sua aparência. Lisboa surge como palco principal da acção, especialmente nos momentos vividos em torno do 1.º de Maio de 1962 fortemente reprimido, marcado por despedimentos, espancamentos, prisões, torturas e assassinatos, mas que viria a valer à classe operária a conquista da jornada de oito horas de trabalho diário. Embora simbólicas, as personagens são marcadas por um certo esquematismo funcional, servindo o propósito do filme sem nunca caírem na caricatura. Francisco Froes, Nuno Lopes e Júlia Palha, particularmente esta última, atingem patamares interpretativos de excelência, mostrando-se convincentes nos seus papéis. Melodramático, com o “E Lucevan le Stelle”, famosa ária do terceiro acto da “Tosca” em pano de fundo, “Lavagante” é todo um sonho de vida que se desfaz que surge aos olhos do espectador. Libertado mas destroçado, Daniel abandonará um país eternamente adiado, mão trémula que acena por entre os escombros — ideia fantasmática de uma esperança desfeita, à espera de um futuro que tarda em nascer.
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