A série fotográfica que Georges Dussaud desenvolveu em Trás-os-Montes, a partir da década de 1980, constitui um corpo de trabalho fundamental para a compreensão dos cruzamentos entre fotografia documental, antropologia visual e memória colectiva. O fotógrafo encontrou, nas aldeias do Nordeste português, comunidades cuja organização testemunhava - e, em certa medida, continua a testemunhar - um forte enraizamento comunitário, no que tem de social, económico e cultural. Importa lembrar que a sua aproximação ao território português ocorreu num contexto histórico de transição democrática e reconfiguração histórica, em que o país procurava redefinir-se após décadas de clausura política. Ao privilegiar o espaço rural transmontano, Dussaud fez deslocar o foco do discurso modernizador dominante, propondo uma leitura contra-hegemónica da contemporaneidade. As suas imagens funcionam, assim, como dispositivos de observação etnográfica e, simultaneamente, como construções estéticas que problematizam as noções de autenticidade e intemporalidade.
A prática fotográfica de Dussaud inscreve-se na genealogia da fotografia humanista, mas distingue-se pela dimensão fenomenológica do seu olhar. O sujeito representado não é objecto de contemplação, mas interlocutor num processo dialógico de co-presença. Cada imagem constitui um enunciado visual em que a dimensão estética se conjuga com uma epistemologia do real, problematizando as fronteiras entre documento e representação. O seu olhar é, assim, simultaneamente analítico e poético, articulando observação participante e tradução visual da experiência humana. O uso do preto e branco, aliado a uma composição rigorosa e à exploração da luz natural, opera como estratégia de abstracção simbólica, sublinhando a densidade material dos corpos, dos gestos e das paisagens. Dussaud converte o quotidiano rural em signo de resistência ontológica face à aceleração histórica, elaborando uma poética da permanência. Neste sentido, a sua obra propõe uma hermenêutica da vida rural enquanto espaço de identidade e memória, constituindo-se como arquivo sensível que desafia as narrativas lineares do progresso e da modernidade.
No contexto português e internacional, Georges Dussaud ocupa um lugar de relevo na consolidação da fotografia documental enquanto campo interdisciplinar onde arte, antropologia e história cultural se misturam e confundem. O seu contributo ultrapassa a dimensão estética, configurando-se como uma forma de investigação visual orientada para a salvaguarda do património imaterial e das práticas sociais em vias de transformação. O Centro de Fotografia Georges Dussaud, em Bragança, institui-se como dispositivo de mediação e transmissão desse legado, promovendo a investigação científica, a formação especializada e a difusão pública da fotografia como instrumento cognitivo e cultural. É lá que vamos encontrar “A Terra e os Camponeses - Trás-os-Montes na Década de 1980”, exposição de longa duração que se afirma como laboratório de reflexão sobre a arte e a história. Deste modo, a obra e o seu enquadramento institucional contribuem para repensar o papel da fotografia na construção de identidades e memórias, consolidando o valor do olhar de Dussaud como um gesto crítico e humanista de resistência à amnésia contemporânea.
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