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quarta-feira, 24 de setembro de 2025

LIVRO: "Cartografia" | Minês Castanheira e Raquel Patriarca



LIVRO: “Cartografia”,
de Minês Castanheira e Raquel Patriarca
Ed. Officium Lectionis, 2025


“Leio-te lembrada de um verso texturado: tropeço
no lado pontiagudo da lágrima, dizia sem deixar
perceber a quem pertence a lágrima. Suponho
que tanto faz. Trago para ti um desejo que cresce
no avanço da madrugada. O impulso de criar
consolo palpável. Uma qualquer espécie de cura
real. Competente. Caminho em tropeço na
direção da madrugada e tudo o que trago são
poemas (desperdícios de ideias incumpridas
na errância das palavras). Caminho observadora
confusa, evito o alvoroço das margens revoltas,
também a sensação de cós nos fios que seguro
entre os dos. À minha volta os livros que leio
como mapas que cobrem (ou revelam) a realidade.
Caminho na direção da poesia, digo, da madrugada
e tudo em redor se faz em laivos de mármore, no
pulsar dos passos imóveis na errância das palavras.”
[“Caminho”, de Raquel Patriarca]

Façamos um exercício de imaginação. Tudo se passa no palco (neste palco?). O cenário é feito de árvores (nem todas de pé) e mar (de um cais de partida, espera e eventual regresso). Uma multidão desfocada em movimento lento, vai ocupando os lugares entre a luz, a sombra e a escuridão. De longe a longe, vê-se uma ou outra figura que se insinua como reconhecível para, no momento seguinte, regressar à obliquidade metafórica, escondendo-se por detrás de um vidro baço. “Sem versos não há vidro através do qual dizer o mundo”. À boca de cena, em extremos opostos do palco, dois conjuntos de mesa, cadeira, janela, material de escrita e de sobrevivência. Há uma música que se insinua (Bach? Suzanne Vega?). Em palco, duas mulheres (vulgares, heróicas) caminham ao encontro da dignidade possível perante a perda. Deitam braços e pensamento a todas as armas que o mundo lhes dá – também àquelas que o mundo lhes rouba – e inventam um rumo próprio, feito de porções mal medidas de desejo, questionamento, desencanto e revolta, queda e voo. Duas mulheres que se correspondem, que se leem e se escutam, que se questionam e se amparam com versos. Duas mulheres que escrevem.

Atentemos no palco, na boca de cena onde, em cada um daqueles conjuntos de mesa, cadeira, janela, material de escrita e de sobrevivência encontramos, agora, as autoras. Sentadas, à sua frente a página em branco, nas mãos a caneta. E vemos que escrevem. Percebemo-las prisioneiras na sua própria casa, “no costume da atalaia, talvez da irmandade, na certeza de que os monstros odeiam rosnam vigiam esperam, mas sobretudo temem”. Têm-se uma à outra, têm-se a si próprias. Entregam-se sem reservas: “Aqui me tens comparecente, paciente, em pose e em vida”. Escrevem, pois. Falam das mãos e da memória, de ofícios maiores, do vagar da espera, da criação de outra existência. Dizem da sabedoria e da utopia, do marginal e do substancial, da captura e da brancura, do quadro e da pose. Riem e choram, sussurram e gritam. Colocam em cada poema a afirmação e a dúvida, a certeza e a inquietação. “Uma memória, uma criança, um desejo escondido ou o tumulto do ofício.” E enviam-nos, uma à outra, angústias ou certezas, dúvidas que não ficam por responder.

“Poesia escrita a quatro mãos e dois corações”, o livro oferece-nos pistas certas e seguras para, embrenhados nos delicados terrenos da alma, conseguirmos interpretar os seus acidentes, abeirarmo-nos deles em segurança ou, ao invés, escaparmos às ciladas, encontrarmos novos trilhos, passarmos ao largo. Entre a primeira e a última cartas (leia-se: poemas) decorrem dois anos - de Outubro de 2022 a Novembro de 2024 -, mas “talvez todo o texto seja, somente, um prólogo”, dizem as autoras. No desfiar dos poemas há casa e há caminho, um cais e uma barca, trevo e treva, flores ao cair da noite. “Uma árvore branca rasgando-se de pé.” Magma subterrâneo ocupando as fendas da recordação. Um agudo corpo de mergulho, os cabelos de Dalila, o coração livre de presságio, a sombra da vigília, o horizonte como embalo, a tampa de Pandora. Mapa de poemas feito, juntar a magia da bússola aos ideais da cartografia é sentir no simbolismo a concretude, na realidade o utópico (o contrário também é verdade). É atravessar tantas camadas quantos os corações que nos habitam: Inocentes, contraditórios, infinitos, luminosos, livres.

Pressinto que olhar de fora esta “Cartografia” é mergulhar na inquietação e no desconforto, “só braços de silêncio (próprios das pequenas causas) deitados em pergunta.” É ceder ao céptico que há em mim e perceber que se esvai por entre os dedos a ilusão de uma imagem que tinha tudo para ser afago da alma. Que importa se aqueles conjuntos de mesa, cadeira, janela, material de escrita e de sobrevivência, nunca existiram? Que os poemas nasceram e cresceram no portátil, nele sofreram implantes e abrasões, excisões e suturas, e seguiram para o destinatário em questão de segundos, ao invés de terem tocado mãos calosas de carteiro diligente e demorado dias, encerrados num subscrito, num invólucro imenso de serapilheira? Que o recolhimento e o silêncio, cederam à tagarelice animada da conversa ao telemóvel? Importa, sim, a poesia e o seu mistério, esse temerário adentrar de um terreno onde a razão se curva ao sentimento, num espaço indefinido entre o dizer e o sentir. É nesse espaço, de simbologia indefinida na cartografia da alma, que a poesia de Minês Castanheira e Raquel Patriarca existe. “Se não amor, então a sombra do amor. Se não o voo, então a sombra de outro mar.”

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