A prática artística de Miriam Cahn (Basileia, 1949) desenvolve-se num campo expandido que inclui o desenho, a pintura, a fotografia, o vídeo, a performance e a instalação, sempre a partir de uma abordagem intensamente física, ética e política. Fortemente influenciada pelo pensamento feminista das décadas de 1970 e 1980, Cahn articula o corpo como lugar de resistência e subjectividade, questionando os regimes de representação associados ao feminino. As suas figuras, frequentemente nuas, grávidas, a sangrar ou em trabalho de parto – temas ainda tabu na história da arte ocidental – confrontam directamente o olhar do espectador, desafiando o legado voyeurístico que tem historicamente objectificado o corpo da mulher. A sua linguagem visual, marcada por traços rápidos, cores vibrantes ou enigmáticas, e figuras ambíguas e espectrais, constrói um imaginário visceral que denuncia a violência simbólica e material exercida sobre os corpos subalternizados.
Nos últimos anos, o seu trabalho tem vindo a alargar o foco temático e a reforçar a sua dimensão política, abordando questões como o abuso sexual, a guerra, a migração forçada, o racismo e a violência sistémica. As pinturas mais recentes de Miriam Cahn evocam gestos de dominação – como pisar, vergar ou violentar –, revelando um mundo onde o corpo é, simultaneamente, testemunha e campo de batalha. Um exemplo contundente é a obra “Fuck abstraction!” (2007), criada na sequência das imagens divulgadas do massacre de Bucha, na Ucrânia. Nela, a artista retrata o uso da sexualidade como arma de guerra, expondo uma cena de brutalidade entre duas figuras masculinas, onde a desumanização do opressor e a fragilidade do oprimido ilustram, com crueza, a obscenidade moral da violência. Recusando a neutralidade estética ou formal, Cahn transforma o acto de pintar numa resposta activa e combativa ao horror contemporâneo, propondo a arte como veículo de denúncia, luta e resistência.
Ao longo de mais de quatro décadas, Cahn tem vindo a construir uma obra coerente e profundamente comprometida, que continua a desafiar normas culturais, políticas e visuais, abrindo espaço para um olhar mais consciente, mais humano – e, por isso mesmo, mais incómodo – sobre o nosso tempo. “O Que nos Olha” é a primeira exposição individual da artista em Portugal, reunindo obras produzidas entre 1978 e 2024. Pintura, desenho, escultura, fotografia e vídeo articulam-se num percurso retrospectivo, onde a montagem – concebida pela própria artista – assume um papel autoral. A exposição afirma a singularidade de Miriam Cahn no panorama da arte contemporânea internacional, destacando a sua capacidade de interrogar criticamente os limites da representação e da linguagem artística. O seu trabalho não visa o deleite estético, mas a inquietação: convoca o espectador a confrontar-se com a violência do mundo e com a sua própria posição face à dor, à injustiça e à devastação.
Sem comentários:
Enviar um comentário