Peggy Guggenheim afirmou ser, ela própria, uma obra de arte — uma declaração que traduz não apenas a sua personalidade irreverente, mas também o seu contributo ímpar para a história da arte do século XX. Oriunda de uma família abastada e herdeira de uma fortuna após a morte prematura do pai no naufrágio do Titanic, Guggenheim construiu um percurso autónomo e singular. Após abandonar os estudos, estabeleceu-se em Paris nos anos 1920, onde se inseriu no ambiente artístico e boémio da cidade, travando contacto com figuras como Marcel Duchamp e Man Ray. Começou, então, a colecionar obras de artistas que viriam a tornar-se centrais na história da arte moderna, como Salvador Dali e Piet Mondrian. A sua paixão pelo coleccionismo levou-a a abrir, em 1938, a galeria “Guggenheim Jeune”, em Londres, onde promoveu a arte surrealista e abstracta. Com o advento da Segunda Guerra Mundial, transferiu-se para Nova Iorque, onde fundou, em 1942, a galeria “Art of This Century”, espaço determinante para a afirmação da arte moderna nos Estados Unidos.
A sua actividade como colecionadora e mecenas foi marcada por uma visão vanguardista e por um forte sentido de missão cultural. Impulsionada por uma relação pessoal e profissional com Max Ernst, um dos seus muitos amantes e artistas patrocinados, Guggenheim desempenhou um papel crucial na divulgação de movimentos como o cubismo, o dadaísmo e o surrealismo, ao mesmo tempo que apoiava artistas então emergentes, como Jackson Pollock. Contudo, um dos aspectos mais notáveis da sua acção foi o apoio pioneiro às mulheres artistas, numa época em que o reconhecimento feminino no campo das artes era escasso. Em 1943, organizou a exposição “Exhibition by 31 Women”, concebida em colaboração com Marcel Duchamp, André Breton e Max Ernst, que deu visibilidade a obras de artistas norte-americanas e europeias num contexto dominado por uma visão patriarcal da produção artística. Esta iniciativa, hoje reconhecida como um marco na história da arte no feminino, destacou-se pelo critério curatorial informado, ao mesmo tempo estético e político.
Após encerrar a sua galeria nova-iorquina em 1947, Guggenheim instalou-se definitivamente em Veneza, onde fundou a sua própria colecção no Palazzo Venier dei Leoni, hoje um museu de referência. Rodeada pelas suas obras e pelos seus catorze cães, consolidou a sua posição enquanto figura incontornável da história da arte moderna, não apenas pelo acervo que reuniu, mas pelo papel disruptivo que desempenhou no reconhecimento de artistas e linguagens até então marginalizadas. Este legado encontra expressão na exposição atualmente patente no MAC / CCB - – Museu de Arte Contemporânea e Centro de Arquitectura, em Lisboa, intitulada “31 Mulheres. Uma Exposição de Peggy Guggenheim”. Recuperando a intenção original da colecionadora, a mostra está organizada em quatro núcleos temáticos — “O ‘Eu’ como Arte”, “Bestiários”, “Estranhamente Familiar” e “O Caminho do Meio: Linguagens da Abstracção” — que abordam aspectos relevantes da criação feminina, nomeadamente a autorrepresentação, a iconografia animal e a apropriação de géneros tradicionais como a paisagem ou a natureza-morta.
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